02/11/2023
As considerações de Nietzsche sobre o Renascimento
Campus Seropedica da UFRRJ
As considerações de Nietzsche sobre o Renascimento
O Renascimento, para Nietzsche, foi um lugar de valores elevados e encontrou seus pontos de referência em tipos históricos ou personagens conceituais que vão dos poetas-filólogos aos inventores e dos grandes mestres da pintura a Cesare Borgia e, até mesmo, Goethe e Napoleão são entendidos como "homens do Renascimento". Tudo isso é o grito de desejo pela saúde de uma civilização que agora se percebe ao crepúsculo ( na décadence)
De modo geral, podemos afirmar que há em Nietzsche pelo menos três momentos de apropriação sobre o Renascimento (Renaissance) no conjunto da sua obra, e que estes estão, respectivamente, vinculados, mas não totalmente afinados e harmoniosamente definidos, com a divisão standard – em três fases – do seu processo de desenvolvimento intelectual. Por isso, neste estudo, pretendemos contextualizar como ocorre o deslocamento dessas apropriações na trajetória de sua obra e queremos compreender, desta maneira, como funciona a sua criativa “metodologia” na análise e no emprego que faz do termo e do fato histórico Renascimento em sua reflexão. Trata-se, pois de um período histórico que o filósofo revisa e ressignifica conforme a sua conveniência, dentro da sua proposta de uma filosofia histórica (historische Philosophie) com consequências fisiológicas e psicológicas, em sua complexa e plural tentativa de busca de uma cultura superior capaz de superar a decadente Europa da sua época; e que, na última fase da sua trajetória intelectual, desempenha um papel mais derradeiro dentro do seu projeto da transvaloração de todos os valores (Umwertung aller werthe).
I) Na primeira fase, Nietzsche adota uma posição mais crítica, vendo o movimento renascentista ligado à cultura socrática ou alexandrina tão repreendida por ele em o Nascimento da tragédia e, ainda, vê o drama wagneriano como o autêntico renascimento (die Wiedergeburt ou das Wiedergeboren) da tragédia grega arcaica; haveria, por conseguinte, para o jovem filósofo, um elo do ser alemão (deutschen Wesen) com o grego arcaico, pré-socrático, que não passaria pela transição do Renascimento, o qual estaria ainda ligado ao Cristianismo. O jovem filósofo, deste modo, adota uma posição mais tradicional do movimento, posição essa que ele traz, especialmente, de suas leituras de A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio (1860), de Burckhardt – que muito embora seja considerada uma obra inovadora e nada convencional para o seu tempo –, ele rivaliza com a sua compreensão de um autêntico renascimento vinculado ao projeto político cultural alemão, proposto por Wagner à época.
II) A partir da fase intermediária, ocorre uma inflexão na assimilação nietzschiana sobre Renascimento – inflexão essa que invade o início de sua terceira fase filosófica –; e este deslocamento está associado, segundo a nossa hipótese interpretava: 1) à ruptura momentânea do filósofo com suas antigas convicções, principalmente com Wagner e Schopenhauer, na busca por independência intelectual; 2) à ressignificação da figura filosófica do espírito-livre através do homem individual de Burckhadt; 3) à rivalidade perpetrada por Nietzsche entre o movimento renascentista e a Reforma; 4) à valorização das ciências; 5) à valorização educativa na formação humana levada a cabo pelo Humanismo e ilustrada pelo artista que faz do corpo o locus da realização da plenitude. No que concerne aos dois últimos pontos, passam a ser valorizadas as ciências, as letras e as artes como expressões da força da personalidade individual – característica fundamental do Renascimento, segundo Burckhardt – e uma das fontes a partir das quais Nietzsche irá ressignificar o conceito mais importante da fase intermediária do seu pensamento, aquele do espírito-livre. Além disso, tais ideias de individualidade estão associadas a algumas figuras históricas ou "personnages conceptuels" como a dos poetas-filólogos, dos inventores e dos grandes mestres da pintura.
III) Na terceira assimilação, que surge, primeiramente, em Para além de bem e mal § 197, Nietzsche radicalizará a sua posição em relação ao Renascimento, que ele ligará ao seu projeto da transvaloração de todos os valores. Desta maneira, passa a estimar a violência (die Gewalt) e a crueldade (die Grausamkeit) do “predador” (Raubmenschen), Cesare Borgia, que exemplifica, através da sua personalidade, a mais radical oposição ao cristianismo dentro do movimento renascentista, e, consequentemente, expressa a emergência da plenitude na cultura através do homem superior, promovendo a verdadeira transvaloração dos valores cristãos (die Umwertung der christlichen Werte) que persistiam, ainda, nas obras dos grandes mestres renascentistas (Da Vinci, Michelangelo e Rafael). Para Nietzsche, muito embora esses grandes mestres pintores e escultores valorizassem a existência, transformando, deste modo, o corpo em um veículo fundamental para as suas criações e através dele eram capazes de expressar a força da personalidade individual em suas obras como a marca indelével do Renascimento, eles não foram capazes de transvalorar o cristianismo, pois não foram, suficientemente, ousados para isto, persistido ainda em suas obras uma tímida hipocrisia. Nietzsche ilustra, como exemplo desta tímida hipocrisia, Rafael que em sua Transfiguração (1517-1520), o seu Cristo está envolto, ainda, em um esvoaçante e fantasioso hábito, ele não ousou mostrá-lo nu. (Cf. KSA 11, 26 [3]).
No terceiro momento de suas considerações sobre o Renascimento, o filósofo embarca em mais uma hipótese burckhardtiana, alimentada também por outras matizes, e a radicaliza. O historiador suíço imaginou em sua obra A Cultura do Renascimento na Itália: um ensaio, a hipótese de Cesare Borgia ser eleito papa por um colegiado de cardeais, o que seria, para Nietzsche, a maior expressão da força da personalidade individual, pois lhe agregaria valores inumanos que ampliariam a sua superioridade. No entanto, Burckhardt recuou, devido ao seu caráter inumano e diante de tanta crueldade e violência – o que, malgrado Machiavel , – o levou a pensar com cautela sobre o príncipe italiano, a quem chamou de "o grande criminoso" . A radicalização de Nietzsche quanto ao papel que o tipo Cesare Borgia desempenha em sua obra é apresentada em o AC, no parágrafo 61, no qual ele diz: “Eu vejo diante de mim a possibilidade de um encanto de magia e cor completamente sobrenatural: [...] Cesare Borgia como Papa!... Compreende-me?”. O AC, geralmente, é tomado como a primeira parte de uma ambicionada obra intitulada A transvaloração de todos os valores, que substituiria a abortada Vontade de Poder; deste modo, o príncipe italiano é implantado dentro do próprio projeto nietzschiano da transvaloração dos valores morais.
. Para Nietzsche, portanto, essa época expressa novas figuras híbridas de grande valor experimental e “o animal predador”, Cesare Borgia é assumido inequivocamente como um momento polêmico frente à decadência mórbida da cidade grande, do heroísmo de Parsifal ou dos heróis arianos à la Gobineau, a energia animal, selvagem passa a ser, então, a premissa necessária para se tornar maior, mais supra-europeu.
Muito embora o Renascimento seja exaltado por Nietzsche como um modo nobre de valoração da vida, não se trata, contudo, de uma peculiaridade, pois há outros momentos da história universal que, segundo ele, também foram capazes de promover a emergência de uma cultura elevada e, consequentemente, de homens superiores em alternativa ao homem formado pela moral cristã que desembocou na decadente Europa da sua época; e que a sua interpretação do Renascimento, apesar de apreciar o domínio da história, não apresenta qualquer estudo aprofundado ou sistemático, suas considerações sobre o movimento – a despeito da influência de Burckhardt – são esparsas, fragmentadas, pessoais e, aparentemente, contraditórias. Por isso, não podem ser encaradas como um estudo historiográfico sério e rigoroso tal como compreendemos hoje. Pelos padrões atuais da pesquisa historiográfica, as considerações nietzschianas sobre o Renascimento seriam avaliadas como um fracassado trabalho intelectual, o que o filósofo provavelmente tomaria como elogio. Entretanto, para além do domínio historiográfico do Renascimento, deve ser considerado, principalmente, o aspecto terminológico do uso que o filósofo faz do conceito, que, à sua maneira, com propósitos próprios, é empregado em textos e contextos e, em suas últimas obras, está a serviço do seu projeto mais ambicioso da transvaloração de todos os valores morais. E, por isso, é pertinente, em sua interpretação que o termo Renascimento seja, às vezes, tomado por "personnages conceptuels", tais como: Cesare Borgia, os Grandes mestres, os poetas-filólogos e mesmo por Napoleão e Goethe são compreendidos também como homens do Renascimento em o Crepúsculo dos ídolos.
um acontecimento não só alemão, mas europeu: uma formidável tentativa de superar o século XVIII com um retorno à natureza, com um ascender à naturalidade da Renascença, uma espécie de autossuperação por parte daquele século (CI, “Incursões”, 49).
É pertinente, por isso, que o termo Renascimento seja tomado ainda em um sentido de superação da sua época, como uma alternativa ao esgotamento da Europa, criticando, deste modo, a presunção progressista tanto idealista quanto positivista de que há melhoramento em todos aspectos da vida. E, pensando nesses aspectos, é nesta direção, que Nietzsche usa, como recurso, um apelo ao passado, para a superação da sua época, como faz, por exemplo, mais uma vez, em o Crepúsculo dos ídolos, e em uma de suas anotações entre o verão 1886 e o outono de 1887:
Contra o grande equívoco de que o nosso tempo (Europa) representa o tipo mais elevado de homem. Em vez disso: os homens da Renascença, assim como os gregos eram superiores; sim, talvez estejamos muito longe de (ziemlich tief – bem fundo): "entender (Verstehen)" que não é sinal de força suprema, mas de completo esgotamento; a moralização mesma é uma “Décadence“.. KSA 12, 5 [89].
Parece, então, que a visão inicialmente do filósofo sobre o Renascimento lhe leva a uma rede inextricável de ambiguidades e reflexões fugazes, como se toda a interpretação possível se deteriorasse em um jogo inconcluso de hipóteses estéreis e perspectivas ousadas. Entretanto, um exame mais aprofundado dos problemas apresentados em sua visão do Renascimento pode ser considerado menos um estudo histórico, e mais como um conceito histórico filosófico que ele revisa à sua maneira com propósitos próprios de propor uma história filosófica. (Oswaldo Giacoia Jr.)