05/05/2022
Suicídio e Medicalização da vida - reflexões a partir de Foucault
“...a quem pertence a vida?”
Este livro não responde nem pretende responder a esta pergunta. Suscita-a, problematiza-a. Questão que o tema do suicídio põe em pauta, sua formulação é proposta desde a “Introdução”, retomada nas “considerações finais” e repetida ao longo de todos os capítulos. Proposta, retomada, repetida – enquanto pergunta – não para ser respondida, mas precisamente, para inquirir. É como um sintoma a indicar a temperatura que mensura o livro todo, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma de exposição. Aquecido ao calor da dúvida e da coragem, desnaturalizando o que foi naturalizado, ampliando o que foi reduzido, desfazendo obviedades, este livro inquieta.
Michel Foucault (1926-1984) é o pensador escolhido para guiar a reflexão. Até onde se sabe, não existe um trabalho específico deste autor acerca do suicídio. Mas a escolha não é aleatória. Foi preciso vasculhar seus escritos – assim como ele vasculhou arquivos para os escrever. E então, surgiram pistas apontando para o tema, surpreendentemente presentes nos momentos diversos de uma volumosa produção. Por isto mesmo, assim como a inserção do tema ao longo da obra de Foucault, assim também sua abordagem é aqui realizada de modo indireto. Ainda que privilegie alguns momentos e alguns textos, o livro atravessa toda a produção de Foucault, como percurso e recurso.
Mas, que naturalizações ele desnaturaliza, que reduções ele amplia, que obviedades desfaz? Assunto médico, o discurso sobre o suicídio seria da competência praticamente exclusiva das áreas da saúde; patologia mental, o ato do suicídio seria resultante de angústia causada por transtornos psíquicos. É esta leitura “universalisante” do suicídio (enquanto discurso e enquanto ato), que o livro pretende contextualizar e questionar. Consistentemente organizado em três tempos ou capítulos, o livro envolve e desenvolve vários ângulos do tema, alguns dos quais são aqui destacados.
1º. A contextualização histórica
Não se trata de negar os aspectos médicos e mentais do suicídio, mas de relativizar seu caráter inquestionável enquanto verdade única e final de um progresso do conhecimento. Para isto, há que inserir o tema no curso histórico e verificar as variadas conceituações e as múltiplas atitudes que, historicamente, o recobrem. É este alargamento no âmbito dos contextos sociais e políticos que o livro oferece ao reconstituir descrições foucaultianas acerca do “poder disciplinar” e do “biopoder”.
Um dos pontos mais instigantes desta reconstituição é a maneira como são revisitadas as relações entre a disciplina e a biopolítica. Pode-se dizer que, entre os estudiosos do pensamento de Foucault, é frequente o realce das diferenças entre uma e outra, uma vez que a disciplina é voltada para o corpo do indivíduo e sua normalização, enquanto a biopolítica tem seu foco na população e no poder sobre a vida. O reforço das diferenças é bastante compreensível, já que Foucault descreve cronologicamente o poder disciplinar antes da biopolítica. Ora, o que há de interessante no presente livro é que o realce das relações recai sobre os vínculos que atrelam disciplina e biopoder. Assim, fala-se aqui em “complementação” e “complementariedade”, em “articulação” e “acomodação”, em “ampliação” e “generalização” e até mesmo em “concatenação”. Esta leitura sugere uma compreensão de conjunto da produção foucaultiana e uma reconsideração da sua repartição em etapas ou fases (arqueologia, genealogia do poder, genealogia do sujeito ético). E, para o tema em pauta – o suicídio – isto permite, especificamente, que se façam aproximações entre textos foucaultianos sobre diferentes temas, produzidos em diferentes datas. Por exemplo, analisa-se comparativamente suicídio e loucura, considerados como desvios e conduzidos ambos à caracterização patologizante: “nesse sentido, à semelhança do que ocorreu com a loucura transformada no que hoje chamamos de ‘doença ou transtorno mental’, o comportamento suicida foi medicalizado”, de modo tal que se pode verificar “os germes da análise do governo político da vida desde os escritos (...)sobre as tecnologias do poder disciplinar”. Assim como o tema do suicídio evoca o da loucura e propõe um certo trânsito até o primeiro livro de Foucault, História da Loucura (de 1961), também permite a remissão ao tema da morte em O Nascimento da Clínica (de 1963), ao do exame e da sanção normalizadora em Vigiar e Punir (de 1975), ao da proliferação dos discursos em História da Sexualidade (de 1976 e 1984) ao da interdição em A Ordem do Discurso (de 1970), ao do governo (ou ao cuidado) de si nos últimos Cursos (de 1982-1984).
Mas, além desta visão de conjunto, ao inserir o tema do suicídio no largo âmbito dos contextos sociais e políticos, alcança-se, principalmente, compreender melhor seu estreitamento atual no estrito âmbito da saúde mental.
2º. A atualidade
Este estudo, como todo o pensamento filosófico de Michel Foucault, remete a investigações históricas. Não, porém, pelo gosto apenas da informação, da curiosidade ou da erudição. É que o percurso de situações passadas conduz à crítica daquilo que em nossa atualidade se apresenta como evidente. “É preciso salientar – lê-se na “Introdução” – que as problematizações realizadas nesse trabalho não visam a constituir algo de ordem de uma apologia (...). Trata-se de propor um pensar diferentemente do que se tem pensado acerca do tema e, desse modo, fomentar uma discussão que seja mais densa, que não se pretenda esgotar e nem memo propor apropriações de determinado saber sobre o suicídio”; trata-se de trabalhar o tema “enquanto fenômeno humano, discutível a partir de vários pontos de vista, entre eles, o filosófico”.
Neste sentido, um olhar sobre o nosso presente, situando o tema no espaço de perspectivas (historicamente mutáveis), faz vê-lo, por um lado, em sua especificidade a partir da sua diferença com o passado e, ao mesmo tempo, como esperançosamente flexível e transformável na direção do que virá.
3º. Os paradoxos da atualidade
Flexível e transformável, o tema do suicídio, em nossa atualidade, carrega paradoxos. Estudos recentes o descrevem como “fenômeno multifatorial” ou “multicausal”, “multideterminado”, mas ainda assim, identificam-lhe como causa “a presença de transtornos mentais”, reconduzindo-o ou reforçando seu pertencimento quase exclusivo às áreas da medicalização e da patologização. Entretanto, o próprio profissional de saúde “é também um sujeito que pode recusar naturalizações e inserir a preocupação crítica em sua atuação e na constituição de seu saber”.
É por esta via deste paradoxo talvez, que se insinua um outro e mais importante. Por um lado, interditado enquanto ato e discurso, o suicídio “adquire ares de assunto ‘tabu’”, tabu que, de religioso e moral, passa a ser também social e político; diz respeito à morte e, assim como a morte, deve ser mantido oculto, invisível e silenciado. Por outro lado, porém, estudos mais atuais sobre prevenção do suicídio expõem o risco de sua ocorrência não vir a ser reduzida sem uma responsabilização social e política sobre condições de vida mais dignas. E isto significa que ao contrário de silenciar o discurso “para evitar ao máximo a possibilidade de sua ocorrência”, seria melhor “falar abertamente sobre o tema”, na suposição de que o discurso “pode auxiliar na prevenção do ato”.
Mas estes são paradoxos que o livro descreve sem resolver. Nem poderia. Afinal, eles pertencem ao espaço daquela pergunta fundamental – “a quem pertence a vida?” – a que, sabiamente, o livro não pretende responder.
São Paulo, junho/21
Salma Tannus Muchail