21/07/2020

Revista das Questões - Chamada de Artigos

Antropofagias futuras 

Qual futuro podemos vislumbrar para a antropofagia enquanto tema de estudo, ou para perspectivas antropológicas, filosóficas e culturais que o reclamam? Podemos supor que a antropofagia, além de ser uma prática tradicional de povos ameríndios, contém em si um certo desenho de futuro? Este número da revista Das Questões pretende explorar diversas respostas possíveis a essas duas perguntas, a partir de três eixos principais de análise: (1) a filosofia antropófaga de Oswald de Andrade; (2) o campo de estudo antropológico dos rituais antropófagos ameríndios; e (3) as teorizações sobre aantropofagia no Ocidente. Assim, Antropofagias futuras indica, de saída, o desejo de mapear os sentidos e a importância que atribuímos à antropofagia em suas várias dimensões: filosóficas, antropológicas, artísticas, culturais, políticas, históricas, educativas, civilizacionais, em suas múltiplas perspectivas e textualidades. Sem querer delimitar questões que podem surgir desse convite, apresentamos breves considerações sobre cada um dos eixos indicados acima, a título de exemplo.

Com relação ao primeiro eixo, Oswald mirava sempre, por diversas vias, com estratégicas distintas, “os caminhos livres que o futuro indica”. É o futuro ele mesmo que indica os caminhos livres. Nos textos em que analisou as utopias, na elaboração de sua teorização antropofágica como perspectiva utópica, em sua incansável e combativa avaliação das artes, da cultura, da política, da história e, podemos dizer, em todas as dimensões de sua vida, o futuro não é projeção messiânica, mas exercício de síntese a indicar caminhos livres. Daí a questão central do(s) sentido(s) do termo “utopia” na prosa e na poética antropófagas de Oswald. Em sua obra, o futuro é conjugado, no passado e no presente, de modo sempre prismático, aberto, mas decisivo. Em O caminho percorrido, por exemplo, Oswald escreve: “A Antropofagia foi, na primeira década do modernismo, o ápice ideológico, o primeiro contato com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro”. A atenção à forma como Oswald compõe suas frases, suas análises e seus vaticínios, é fundamental. Agir (dividir, orientar) no sentido do futuro como critério de avaliação implica a pergunta (sempre aberta) por este sentido, e não (apenas) mera avaliação de acontecimentos, ideias, poéticas e textos passados tendo em conta seus frutos eventuais, que seria o mais usual. Vale pensar, portanto, a perspectiva futura da filosofia antropofágica de Oswald à luz de (ou em contraste com) suas próprias elucubrações em torno do futuro, da utopia, da história, etc.

Com relação ao segundo eixo, dos relatos de missionários e viajantes da época colonial à antropologia contemporânea, os rituais antropofágicos, presentes nos mais diversos cantos do planeta, figuram como um elemento recorrente na construção de narrativas e análises em torno das sociedades ditas “tradicionais” ou “primitivas”. A antropofagia, em suas múltiplas leituras, oscilou sobretudo entre a atribuição estigmatizadora de “selvageria” aos povos autóctones e uma prática ritual que ajudaria a compreender a especificidade das culturas indígenas, chegando a servir ao reconhecimento de uma ”maior nobreza” dessas culturas frente às culturas ocidentais, como em Montaigne. Nos mais recentes estudos antropológicos sobre o tema, a questão da antropofagia associa-se a perspectivas teóricas mais precisas, como em Claude Lévi-Strauss, Pierre e Helène Clastres, e as derivas brasileiras de Eduardo Viveiros de Castro, Aparecida Vilaça, ou Carlos Fausto, para ficarmos apenas em alguns dos estudiosos que a analisaram no âmbito dos povos indígenas americanos. Como avaliar as diferentes abordagens da antropofagia no campo da antropologia e a importância dessas abordagens do ponto de vista dos desafios postos pela urgente luta em defesa dos povos indígenas, cada dia mais ameaçados por todos os lados?

O último eixo, a antropofagia no Ocidente, pretende dialogar com outros conceitos de antropofagia, como aqueles referidos a aspectos literários e religiosos da tradição ocidental, ou sua presença na psicanálise, na história e na filosofia. Da Grécia antiga ao capitalismo ultraliberal do século XXI, a antropofagia aparece como elemento recorrente na autocompreensão da cultura ocidental. Sigmund Freud elegeu o assassinato e a devoração do pai da horda primitiva como a cena fundadora da civilização, e localizou no canibalismo o cerne dos processos de luto e melancolia. Ele seguia em parte as intuições de Karl Abraham e Melanie Klein sobre o “instinto canibal”, próprio à fase oral e elemento essencial no processo de constituição da psiquê humana. Nicolas Abraham e Maria Torok inovaram a psicanálise com suas observações sobre a fantasia de incorporação do outro pela boca. Marcel Detienne analisou o sentido do termo em relação aos mitos e às práticas sacrificiais da Grécia antiga. Estudos históricos, religiosos, filosóficos e antropológicos dedicam-se à atribuição ou condenação (protestante) de uma dimensão antropófaga do rito católico da eucaristia. A antropofagia comparece na literatura ocidental no Calibán (anagrama de canibal) de Shakespeare e em Pentesiléia, de Kleist, por exemplo. Há um canibalismo pop no cinema alternativo e hollywoodiano, que aparece com insistência nos filmes de zumbi contemporâneos, ou no carismático psicopata, Hannibal Lecter, dentre outros. Já Achille Mbembe utiliza o termo para caracterizar a dimensão destrutiva e selvagem do capitalismo contemporâneo. Essas são algumas ocorrências da antropofagia que servem, cada uma a seu modo, para ajudar a compreender aspectos da autocaracterização do ser humano no Ocidente, indicando complementos, contrastes, ou mesmo incompatibilidades com a filosofia antropófaga de Oswald ou com o significado da antropofagia entre os ameríndios, e convidando a múltiplos e importantes desdobramentos nas perspectivas teóricas decoloniais.


Editado por: Filipe Ceppas e João Camillo Penna
Prazo para submissões: 30 de novembro

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