12/03/2022
Revista Limiar Dossiê Memória e esquecimento ( lançamento no. 7)
Revista Limiar
Dossiê Pensamento e Imagem
Em veredas filosóficas o que conta é a experiência de pensamento. Na história da filosofia, desde os primórdios, tais veredas se constituíram reivindicando uma identidade, a saber, o pensar discursivo, obra da razão lógica, via unívoca para o alcance da verdade, da realidade do ser e do método adequado. A instituição dessa via - que precisa se descolar das imagens da memória fixadas a partir da percepção e das palavras ligadas à experiência mutante, para alcançar a dimensão abstrata, universal e fixa do real - não se efetivou contudo nos mares da tranquilidade. Foi preciso luta e enfrentamento com o espectro de formas outras de pensar, as quais reivindicam, desde sempre, algum quinhão de legitimidade. Em geral, referimo-nos aqui às vias que não se dissociam do sensível, particularmente aquelas em que o representar se traduz em formas imagéticas, as quais, ademais, conheceram uma era em que o seu valor não estava sujeito à desconfiança, aquela em que os mitos, a poesia, os sentimentos estéticos em geral eram reconhecidos como os caminhos lícitos para a obtenção da verdade e do conhecimento. As representações geradas em tais regiões e pautadas pelo domínio da imaginação - o que não exclui o pensamento racional, apenas não faz dele o elemento supremo, - , reivindicam, tal como a reflexão que prioriza o conceito, interpretações sobre o existir, sobre o mundo, e sobre o próprio pensar para além daquelas intrínsecas ao senso comum e cristalizadas pela linguagem cotidiana.
Tenhamos em mente, mais especificamente, as representações imagéticas produzidas pela poesia e pela literatura. Essas esferas, lembrando Steiner, comungam com a filosofia a necessidade de produzir sentido por meios performativos idênticos: expressam-se pelas palavras, implicam sintaxe e pontuação: “uma e outra solicitam a tradução, a paráfrase, a metáfrase e todas as outras técnicas de transmissão ou de traição.., ou resistem-lhes” (Steiner). Daí decorre que a eleição da racionalidade logico-conceitual como caminho privilegiado para o pensar não impediu a ocorrência de irrupções sintomáticas, adventos reveladores de que a supremacia do conceito decretada pela filosofia precisou sempre se defender e ratificar o lugar quase nenhum – ou o lugar do erro e da ilusão - destinado a formas outras de pensar que ousam e insistem em pensar por imagens. Com efeito, certa tensão perpassa a história do pensamento filosófico, no tocante a essas questões. São vários os momentos em que a prevalência originalmente estabelecida é perturbada, a poesia e a literatura despontam secretamente em terrenos que se querem pura racionalidade (“a prosa literária escondida em toda filosofia”, o dirá Sartre), e as reflexões irrompem em imagens poéticas. Assim como são muitas as tentativas de fixar, bem como de interrogar, as fronteiras entre o pensamento conceitual e aquele que, de um modo ou de outro, vincula-se à imagem.
Evocando de modo geral o fim do século XVIII até os nossos dias, vemos que uma reflexão inesgotável sobre as diferenças e as intersecções entre esses caminhos prolifera. Sob perspectivas diversas, mesmo quando se procura resguardar a especificidade de cada vertente, e a despeito das vozes que perseveram na defesa de uma distância irredutível, reivindica-se similaridades, pontos de encontro, afinidades, entre o pensamento racionalmente estruturado e aquele que se aproxima dos sonhos, que se mescla com o sensível, que pensa por imagens. É assim que podemos evocar os poetas que vão à filosofia, bem como os filósofos que se enlaçam com a poética, para ficarmos nos termos de Benedito Nunes. Em todos eles encontraremos uma reflexão sobre a oposição e sobre as conexões entre o conceito e a imagem, entre o pensamento diurno e o pensamento noturno, para lembrarmos Bachelard, ou entre a natureza primeira do pensamento que é sempre uma alucinação - e que depois se processa como devaneios e como imagens da fantasia, - nutrido pelas dimensões primárias da psique, em que prevalece o princípio de prazer, e o pensamento ligado aos processos secundários, ancorados no princípio de realidade, desperto para os imperativos mundanos, em termos freudianos.
Caso insistíssemos em mencionar alguns nomes referentes ao período antes aludido, poderíamos iniciar pelo romantismo alemão, passando por Nietzsche que antecipa o século que o sucede e mesmo os tempos contemporâneos nesses e em outros tantos aspectos; Heidegger que levantará a bandeira da inequívoca proximidade entre filosofia e poesia; os filósofos franceses que tematizam seja as similaridades e distâncias entre o pensamento conceitual e o pensamento por imagens, seja a relação de ambos os registros com a realidade que nos excede e a linguagem não contempla, como o fizeram Blanchot, Ricoeur - cada um definindo a seu modo proximidades e distâncias - e, antes deles, Bergson. Mencionemos um autor ainda mais próximo de nós. Pierre Macherey, a vislumbrar na literatura uma região produtora de pensamentos, o que encontraria um correlato em certos discursos filosóficos, dos quais as imagens literárias emanam, sugerindo assim a contaminação discursiva entre formas de pensar que se querem díspares; assim, se as fronteiras não desaparecem, não deixam de ser transtornadas. Decerto, o esforço de nomear não contemplaria todos os que apontaram para confluências e divergências tão instigantes quanto desafiadoras. E haveria ainda os poetas, aqueles que vão da poesia à filosofia, aqueles para além de Pessoa e Rilke. Nunes outra vez.
Outro registro deve ainda ser referido como uma via em que de algum modo se tensionam pensamento e imagem. Uma via que nasce na contemporaneidade e que não afronta as pretensões da filosofia, como ocorre no caso da poesia e da literatura, uma vez que são outros seus meios performativos, ou seja, se trata de uma esfera que não se estrutura através de imagens escritas, mas de imagens encenadas. O filme, em sua natureza temporal, enquanto imagens que se sucedem – na simbiose de múltiplos recursos técnicos - cria realidades, nos diz Merleau-Ponty. Ainda que não seja poesia ou romance, ainda que não opere pela construção conceitual das ideias, ainda que não se realize como texto, o cinema, enquanto linguagem que implica as vias do sensível, invade o mundo com inesgotáveis perspectivas, impacta-nos com suas imagens moventes, as quais, como o diria Deleuze, não deixam de violentar o pensamento, inclusive aquele que se propõe filosófico.
A revista Limiar vem, assim, convidar aqueles que queiram escrever sobre os temas acima abordados, a saber, a oposição entre conceito e imagem, as tensões entre filosofia e literatura, o cinema e suas relações com o pensar, para participar do Dossiê Pensamento e imagem.
Os artigos devem ser enviados para:
rpaiva@unifesp.br e fapmachado@unifesp.br.
Os textos serão recebidos até 30/07/23
Observamos que além dos textos para o Dossiê, a Revista Limiar recebe em fluxo contínuo textos ligados à pesquisa em filosofia e áreas afins e que se enquadrem em sua linha editorial. Nesse caso, os textos devem também ser enviados para os e-mails acima mencionados.
As regras para formatação podem ser encontradas em https://periodicos.unifesp.br/index.php/limiar/about/submissions
Rita Paiva e Francisco P. Machado