Homossexualidade: enrustimento e servidão
Cleiton Zóia Münchow
Professor (IFMS) e doutorando em Filosofia (USP)
31/05/2024 • Coluna ANPOF
Como explicar um homossexual bolsonarista? Como explicar que há homossexuais que julgam a si mesmos e aos demais homossexuais como doentes, pecadores e viciosos? Como explicar homossexuais que solicitam terapia de reversão para si e para os demais? Como explicar homossexuais que reprimem a si mesmos e aos demais homossexuais? Perguntas constitutivas do problema fundamental da filosofia política que, entre 1552 e 1553, sob a assinatura de Etienne de La Boétie, ficou conhecido como problema da servidão voluntária. O filósofo perguntou-se por aquilo que garantia o domínio de um, o tirano, sobre muitos, o povo, dentre os quais, boa parte, especialmente a dos tiranetes, encontra-se disposta a agir contra si mesma em nome de quem as tiraniza. Estamos de acordo com Deleuze e Guattari no entendimento de que Espinosa foi aquele que, na história da filosofia, melhor soube formular o problema da servidão ao perguntar-se: “Por que os homens combatem pela própria servidão como se se tratasse de sua salvação?” (D & G, p.46). No presente texto, retomaremos esse antigo e fundamental problema da filosofia política em termos homossexuais.
Por que muitos homossexuais combatem pela servidão como se salvação fosse? A dificuldade de formularmos o problema filosófico da servidão voluntária em termos de homossexualidade ganha em compreensão se nos voltarmos para a vida e o pensamento de Herbert Daniel que, durante a luta militante nos movimentos de esquerda, conseguiu colocar belamente a questão, no contexto da ditatura militar, ao substituir, com ironia, a excepcionalidade da interrogação que busca apontar para os poucos que se levantaram contra o autoritarismo, pela interrogação que questiona “por que, tendo em vista a situação da época, tantos e tão numerosos NÃO se revoltaram?” (DANIEL, 1982. p.46). Na solidão dos aparelhos, exilado pela ditadura, incluído no segundo lugar da lista dos mais procurados do país, Herbert Daniel, por muito tempo, entre seus companheiros de militância, não conseguiu questionar a dominação heterossexual e, no exílio da luta política, viveu a solidão do amor no exílio da sexualidade.
A compulsoriedade heterossexual, com sua força de exclusão, conseguiu produzir um exílio no exílio, Daniel viveu a solidão de quem é excluído pelo grupo de excluídos. A violência dessa força sobre a vida de Herbert Daniel teve suas marcas evidenciadas em recente peça sobre a vida e a obra do autor. Em Codinome Daniel, musical escrito por Green e dirigida por Zé Henrique de Paula, há uma cena em que o cenário, sem sofrer modificações materiais, sofre uma transformação narrativa que aglutina o exílio vivido no quarto da residência familiar ao do aparelho com seus companheiros de luta, nessa passagem, o delírio se apresenta como efeito e saída do duplo exílio: Daniel imagina um encontro com outros homossexuais que estão em pleno exercício crítico da heterossexualidade compulsória, da repressão homossexual e da própria palavra homossexual entendida como signo que reduz a pessoa a um aspecto da sua existência global. O medo de questionar a situação de servidão homossexual pode ser mensurado se atentarmos para a violência da ditadura militar que Herbert Daniel, desde muito novo, teve coragem para enfrentar.
“Por que a ditatura conseguiu chegar tão longe na opressão?” (DANIEL, 1982. p. 46), perguntou-se Herbert Daniel. Esse “tão longe” ao qual se refere o autor não diz respeito unicamente aos 21 anos de duração da ditadura, refere-se, especialmente, ao fato de que a tortura deixou de ser simples recurso policial e tornou-se um método de investigação da realidade. “A ditadura, filosoficamente, com seu método novo, não apenas investigava, como fazia sua verdade, extorquia com rigor, paciência e sangue” (idem, p. 39). Em Codinome Daniel a personagem, em uma cena muito didática, reconstitui para Claudio, companheiro de aparelho que se torna companheiro amoroso, seu percurso pelas mais diversas organizações políticas revolucionárias, o sexo, no entanto, não fazia parte das propostas de nenhuma Vanguarda Popular Revolucionária e a homossexualidade, na ótica do materialismo histórico do período, era encarada como desvio pequeno burguês a ser superado. Recordamos que, além da luta armada, contra a ditatura militar insurgiu-se a luta amada que fez do sexo e do amor a principal arma contra o autoritarismo. Não levou 21 anos para que Herbet Daniel participasse da luta armada, mas levou mais de 21 anos para que ele participasse da luta amada na integralidade de sua pessoa.
A persistência da repressão aos homossexuais revela sua força no apagamento das histórias de homossexuais que resistiram à ditadura militar brasileira e na ignorância generalizada do fato de que um dos principais revolucionários da luta armada contra a ditadura ter sido um homossexual que, posteriormente, posicionou-se politicamente como bicha e como pessoa vivendo com HIV. Em nossa memória escolar/televisiva da resistência à ditadura dominam homens heterossexuais. Só recentemente começamos a vencer a repressão sexual que empurra a existência homossexual para fora da consciência como lixo lógico do inconsciente sexopolítico. Herbert Daniel, como é evidente, não foi único a lutar contra o autoritarismo brasileiro. A experiência do duplo exílio também foi vivida por outros tantos homossexuais, dentre os quais destaca-se João Silvério Trevisan, cuja resistência se deu no âmbito da luta amada por meio da criação (cinematográfica, literária, filosófica e política) contra todas as formas de autoritarismo; nessa luta, o autor construiu um conceito que pode nos ajudar a pensar a questão da servidão homossexual no Brasil.
O enrustimento é um mecanismo da dominação que coloca homossexuais, desde muito cedo e de maneira contínua, no exílio de uma solidão marcada por violências perpetradas por aqueles que deveriam protegê-los e acolhê-los em sua diferença e fragilidade. O exílio é o sentimento profundo de inadequação reproduzido por um processo de enrustimento nacional. No Brasil, conforme Trevisan, há uma espécie de enrustimento cultivado. O enrustimento não pode ser reduzido à ideia do indivíduo que “esconde ou reprime algo que faz parte da sua natureza” (TREVISAN, 2017. p. 207). A sociedade brasileira faz do enrustimento uma qualidade a ser cultivada “em nome da decência, da probidade e da descrição. Ou mesmo do conforto” (TREVISAN, 2017. p. 207-8). Em Devassos no Paraíso, Trevisan encontrou as raízes do enrustimento no processo de colonização que, em sua perseguição aos sodomitas, produziu um verdadeiro pânico. Trata-se, portanto, de uma longa história de corrosão do caráter humano que se encontra em curso desde o processo de formação do Brasil.
“Disfarçar-se sob à sombra da invisibilidade gera, quase sempre, sofrimento pessoal e alheio” (TREVISAN, 2017. p. 208). Certamente há quem não se contamine e consiga, nos limites estreitos do enrustimento, encontrar a amplidão possível diante do fechamento exterior, “mas há estados de enrustimentos doentios — quando transformados em fobia, descarregam sua frustração sobre quem assumiu ser a si mesmo em ambos os sexos e gêneros” (TREVISAN, 2017. p. 208). Esse processo “atinge o grau de agravamento máximo quando o enrustido toma consciência da situação e num estágio supostamente adulto, ampara-se no enrustimento para resistir a encarar às claras sua verdade mais íntima” (TREVISAN, 2017. p. 208). Essa crosta de ressentimento encontra-se em diferentes planos da nossa realidade. O enrustimento, na leitura de Trevisan, faz parte da formação do Brasil, encontramo-nos, em meio a uma verdadeira “cultura do enrustimento” que “produz mediocridade e, por extensão, ignorância ao se afastar deliberadamente da realidade”: no campo da política nacional “as decisões só ocorrem diante de fatos consumados, raramente por se encarar os desafios da realidade” (TREVISAN, 2017. p. 208). Por sua vez, o famoso “jeitinho”, que constitui o cotidiano de nossas instituições, é a prova concreta do grau de profundidade e intensidade do enrustimento que nos corrói.
Os homossexuais que combatem não somente pela própria servidão, mas também pela dos outros como se estivessem a combater pela salvação, por mais que não ocultem ou escondam a sexualidade, encontram-se, muitas vezes, enrustidos sob a capa de uma ideologia que os toma como seres de segunda categoria cujo principal mérito encontra-se no seu próprio reconhecimento como ser naturalmente inferior. Certa vez encontrei com um homem homossexual que me perguntou se eu gostava de “gays” ou de “homens de verdade”, essa pergunta indica o modo como ele avaliava o mundo ao redor e a si mesmo no mundo como pessoa ontologicamente menos consistente e mais distante da verdade. No caso em questão, o enrustimento produziu uma autoimagem de si como desvio do tipo natural e original. O sentimento de inadequação produzido pelo enrustimento em sua política de exílio resta oculto ao próprio indivíduo por meio do sentimento de reinserção na ordem que, ideologicamente, imagina como natural, a saber, a ordem do mundo heterossexual. Em sua pergunta por minhas preferências, ele queria uma resposta que aplacasse a angústia que palpitava em seu peito como sentimento de inadequação produzido pelo enrustimento que lhe asfixiava o desejo vital.
REFERÊNCIAS
DANIEL, Herbert. Passagem para o próximo sonho: um possível romance autocrítico. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.
DELEUZE, G.; Guattari, F. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B.
L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34, 2010.
TREVISAN, João Silvério. Pai, Pai. – 1 ed. – Rio de Janeiro: Alfaguara, 2017.
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