O estatuto da morte violenta no Brasil
Adeir Ferreira Alves
Doutorando em Metafísica (UnB)
21/08/2023 • Coluna ANPOF
A “atípica” violência no Guarujá/SP que ceifou a vida de um policial militar e cerca de 16 outras pessoas em julho e agosto de 2023 nos provoca reflexões acerca da morte violenta no Brasil. Ela nos faz lembrar dos dispositivos de racialidade (racismo, branquitude, desigualdades).
Ainda está em curso em diferentes regiões do país a “guerra ao tráfico de drogas”, que deixou na Bahia 19 mortos e no Rio de Janeiro 10 mortos. O caso do Guarujá se destacou dos demais, considerados corriqueiros. Esse destaque apenas denuncia a amplitude do racismo e a força da branquitude. Ele também mostra o vazio legal do discurso “guerra ao tráfico de drogas” e a superficialidade dos ensaios de enfrentamento à violência.
Nesse breve texto, empregamos uma didática narrativa para refletir sobre a gravidade dos nossos problemas sociais.
Estatuto da Morte Violenta
Por esse Decreto Colonial, nós colonizadores instituímos o Estatuto da Morte Violenta e delegamos sua execução aos mentalmente colonizados. Entra em vigor a partir do desembarque do primeiro colonizador nessas terras.
Ilha de Vera Cruz, 1500.
Preâmbulo: O filosofar irrompe-se pelo susto, diz a filosofia helênica... já à brasileira o filosofar não se irrompe nem pelo terror, pois a morte emudece o existir.
Parágrafo único: com base na filosofia aristotélica, as forças de segurança devem atuar como cordão de isolamento social, econômico e racial entre as diferentes camadas sociais. Também com fundamento em Aristóteles:
§1.º a irascibilidade (elevada capacidade de indignação e violência direcionada) é competência exclusiva das forças de segurança;
§2.º embora eu também já tenha sido Oficial Militar das Forças Armadas e nunca tenha enfrentado um conflito armado sequer nos quase 5 anos de caserna, testemunhei a irascibilidade como: uma espécie de estrutura institucional e mental da segurança pública e de seus agentes; um alimento diário que deixa a tropa eletrizada, em estado de prontidão, disciplinada e inquestionada para pronto emprego da força em caso de necessidade;
Art. 1 - assassinato de policial
Em qualquer percurso contextual no Brasil, a morte violenta praticada contra a polícia ou mesmo ameaça de morte é um "ponto fora da curva", não porque a sua vida possua um valor superior, mas por causa da funcionalidade política de seu ofício;
§1.º a equação da morte violenta faz da atuação policial brasileira uma arma de controle, de seleção e de contenção de diferentes segmentos na organização da sociedade desigual. A cartilha do Genocídio da População Negra define o perfil de quem está autorizado a morrer, quem pode ser deixado morrer e de quem pode viver:
a) a ordem do genocídio institui a polícia como um dos instrumentos privilegiados de matar e não o de morrer;
b) a operacionalidade do genocídio só pode ser racionalmente digerida com uma justificativa socialmente aceitável, como a suposta “guerra ao tráfico de drogas”. Essa guerra autoriza o Estado a reativar as guerras da era colonial e escravista. O racismo, a fome, a pobreza e as demais desigualdades (sociais, de classe e de gênero) são formas de guerra;
§2.º considerando que a morte (ou baixa) de policiais macula a moral das tropas de segurança, é preciso que os operadores e as operadoras da lei se indignem e revidem contra toda e qualquer ameaça ou suspeita de ameaça à sua vida e à lei;
§3.º é preciso revidar, exceto nos casos em que a tropa de segurança esteja sob condições de ameaças, humilhações públicas e sob agressões físicas e morais de pessoas brancas e ricas:
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no próprio Guarujá ou em outros locais nobres;
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depredando prédios públicos em Brasília ou outras capitais para fins de prática de Golpe de Estado;
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em situações que membros desses grupos privilegiados estejam apenas dando carteiradas quando cometem crimes, infrações e irregularidades;
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em situações que membros desses grupos privilegiados estejam dando “branquiçadas” (abuso dos privilégios da suposta superioridade racial e de classe para fins de promoção de si e subalternização do Outro). Essas são situações frequentes sofridas por motofretistas, diaristas e porteiros, especialmente em áreas nobres do Brasil;
Art. 2 - O local autorizado da morte violenta:
O programa de genocídio circunscreve os corpos "autorizados" a morrerem aos espaços onde se está autorizado a matar – sem necessidade de justificativa, burocracia jurídica, mandado de busca e apreensão, inquérito policial, julgamento, condenação ou prisão.
§ 1.º a presunção de inocência está suspensa quando se trata de pessoas negras e periféricas. Basta ser morador de periferia, portar uma furadeira ou um guarda-chuvas, ou mesmo ser criança com uniforme escolar. A mera existência desse Outro é grave ameaça à ordem;
§ 2.º a identidade, a dignidade humana e a quantidade de corpos tombados não são informações relevantes, pois são de praxe as operações policiais com desfecho em morte e a suspensão dos direitos básicos nos morros, periferias e favelas;
Art. 3 - O local ad hoc da morte nos dizeres da branquitude:
"Os corpos autorizados a morrerem podem até ser mortos, mas não aqui no nosso quintal moralmente humanizado, racialmente selecionado e economicamente blindado, PORQUE ESSE É UM PROBLEMA QUE NÃO ADMITIMOS SER NOSSO";
Art. 4 - "Os [nossos] mortos" (não os de James Joyce):
Joyce, no Brasil não cai neve, chuva nem sol sobre os túmulos dos nossos mortos, porque nossas covas estão sempre abertas. Com efeito, não há tempo para fazer uma lápide com os nomes dos mortos, nem para os rezar ou lhes render homenagens. A cada 23 minutos, antes do ciclo de um luto, inaugura-se outro;
§ 1.º Os nossos mortos possuem uma estranha capacidade de levar para a cova junto com eles uma multidão de outras pessoas, estejam elas mortas ou vivas, sejam elas policiais (assassinados, auto exterminados, mentalmente adoecidos) ou pessoas do povo, exceto pessoas brancas, ricas e com elevados cargos públicos, pois no assunto de morte violenta somos antidemocráticos e desiguais;
§ 2.º esse puxadinho da periferia, o cemitério – bem como a cadeia, a marginalidade, a pobreza e o analfabetismo – informa que o alvo é coletivo (corpo, mente, memória, história, cultura, religiões de matriz africana, direitos, dignidade). Portanto, o maior quantitativo de mortos e semimortos é objetivo principal do programa genocida;
§ 3.º o que a morte do PM do Guarujá representa para a população pobre e preta (estando ou não envolvida com o tráfico de drogas)? Aumento infinitamente maior da “autorização” para matar mais pessoas pretas e pobres, no morro ou fora dele; aumento da irascibilidade/indignação da tropa;
Art. 5 - O alarde: "Policial morto no Guarujá. Inadmissível. Punição":
Com todo respeito ao morto, o problema aqui é mais amplo do que a comoção profunda da perda de uma vida humana. Uma baixa é mais do que ranhuras na moral da tropa. Trata-se de um recado do Estado ao povo preto, pobre e periférico: "não se inverte a ordem da política de morte no Brasil, deve-se respeitar o alvo e o local, pois caso contrário o saldo de mortes desses Outros vai aumentar";
Art. 6 - Os efeitos:
A dinâmica da necropolítica impõe uma lógica estruturada no terror, na ameaça, no silenciamento, na inimizade, no fortalecimento de trincheiras e fronteiras. No Brasil, a população negra e pobre é o rescaldo dos escravizados que o país ainda tenta "solucionar" ao seu modo brutal e desumano, ou seja, matando, adoecendo, empobrecendo, enlouquecendo, mutilando, desumanizando...;
§ 1.º o que deveria ser reparação, políticas públicas e indenização o Estado colonialista soluciona com eugenia e higienização racial. A execução do genocídio em curso só tem plena eficácia interdisciplinarizando com:
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educação precária e;
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sistema de saúde ineficiente;
§ 2.º para fins de eficácia, a irascibilidade volta também contra o operador da lei, cujos efeitos são: adoecimento mental, abuso do uso de álcool e outras drogas, autoextermínio, conflitos domésticos etc.
Art. 7 - Houve violações de direitos humanos?
Desde 1500.
Art. 8 – Direitos Humanos (expressamente vetado);
Art. 9 – Políticas Públicas de Reparação (em formulação)
Conclusão
Há um antigo estatuto da morte violenta em curso no Brasil, o que não necessariamente apaga as respostas da inteligência negra, indígena e das demais minorias sociais anticoloniais. Esses Outrificados que escrevem o Estatuto da Vida.
As nossas sepulturas têm o seu duplo. Por um lado, encerram nossos corpos, mas, por outro, irritam a nossa ancestralidade e os nossos antepassados – porque com tanta demanda nem eles têm descanso.
A ancestralidade africana e afroindígena, de diferentes modos, quase compulsoriamente participam conosco num horizonte político de enfrentamento às desumanas condições de vida das minorias étnico-raciais. Nossas ancestralidades transitam da vida para a morte e da morte para a vida criando clínicas espirituais, sociais, culturais e epistêmicas.
Há também ensaios e experimentos de tentativas antimortes violentas (cultura de paz; direitos humanos não-universalistas; políticas públicas inclusivas). Antes de se falar em estatuto pró-vida, é preciso compreender o estatuto pró-morte violenta sob a perspectiva (crítica e histórica) de que as desigualdades no Brasil são consequências e continuidades do racismo e da branquitude aqui implantadas. Não faz sentido insistir a favor da vida ignorando a atuação da indústria da política de morte.