A angústia do ensino: impressões de uma experiência entre a escola e a filosofia - parte I
Ana Monique Moura
Doutora em Filosofia (UFPB/HGB)
24/09/2021 • Coluna ANPOF
“Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho” Epicuro
O ensino de filosofia no ensino médio é ainda um dos maiores dilemas da história da educação brasileira. Por um lado, isso também é marcado pela triste memória de, entre os fatídicos anos da ditadura militar, para citar um exemplo, a filosofia não ter estado entre as disciplinas quistas, tendo sido completamente abolida das escolas, e, por outro lado, o dilema parece também advir, dentre outros tantos outros problemas e desafios, de um aspecto ligado ao próprio uso (ou não uso) da filosofia, em suma, algo, enfim, que define - ou busca definir - o conceito e o suposto destino da filosofia.
Devo assumir, como professora e enquanto alguém que possui experiência com o ensino médio no Brasil, minha hipótese de que entrar numa sala e se deparar com uma turma de adolescentes é mais desafiador do que ter de dar conta de uma turma de graduação, de mestrado ou doutorado. No mais das vezes os universitários sabem mais ou menos o que querem, embora seja compreensível que muitos, especialmente entre graduandos, não sabem o motivo de estarem ali. Contudo, com as turmas de ensino médio, há um je ne se quais de diferente.
Assim que eu retornei dos meus estudos na Alemanha, eu apostei em dar aula para o ensino médio – algo inverso do que eu de fato planejei fazer, pois falo aqui como uma professora de filosofia, cuja formação primeira é de um bacharelado, ou seja, destinei-me à pesquisa no ensino superior.
Recordo de um fato curioso, quando eu saí da aula com a turma do primeiro ano: uma professora me parou e perguntou “que tipo de pedagogia alemã você está aplicando à turma do primeiro ano? Nunca vimos uma turma tão quieta em uma aula”. Entendi logo que o sentido de “quietude” guardava problemáticas.
Devo reconhecer o quão parece ainda (e espero que por tempo findável) ser estranho o Brasil para o próprio Brasil. Lá fora estão curiosos com o que é nosso: Paulo Freire, Anísio Teixeira, Lauro de Oliveira Lima, Nísia Floresta... Em suma, lá fora elogiam e estudam pedagogias brasileiras e nos perguntam sobre elas – que são aqui muito faladas e consagradas, mas jamais ou pouco aplicadas. Não precisamos ir longe para buscar nossos tesouros...
Acrescido a esse acontecimento, a sensação que tive foi a de que meus colegas compreendiam que a pedagogia ou a missão do professor é a de entender - e se esforçar por pôr isso em prática – que o docente é aquele que deve amansar uma turma antes de tudo.
Bem, se ficaram “quietos” em minha aula, não foi porque eu quis amansá-los, mas talvez eu tenha os acolhido exatamente naquilo que os latinos de língua espanhola gostam de chamar de “ganas”: vontade, impulso. Gosto de capturar impulsos alheios e tenho muito respeito por cada uma deles, pois são, no âmbito pedagógico, geralmente prenhe de criatividades e perguntas. Comecei a perceber, com uma angústia irrevogável, como muitos professores, para além de uma busca de aquietar as turmas, se esforçavam por encarar na didática a normatização de valores do conhecimento.
De impulsos particulares nasceram as melhores teorias da ciência, não? Observações particulares, hipóteses, suposições e maravilhosas “maluquices”. E de impulsos particulares e afins podem nascer milhares de pensamentos. Considerando que cada pessoa possui impulsos internos, uma sala de aula, repleta de alunos, sentados a uma aula de filosofia, não poderia se configurar uma aula regada por uma metodologia de amansamento. Ali havia pessoas ansiosas, deprimidas, famintas, outras alegres, saciadas, esperançosas. Imagina quantas emoções diferentes e estados de espírito em jovens há como estofo de novos pensamentos? Me vi diante de um campo pedagógico rico, no qual me lancei também para aprender, além de ensinar. Mas certamente seria um campo muito pobre, caso eu quisesse amansar tudo isso, tornar mudo, quieto e submetido a mim. Fora isso, qualquer sucesso com minhas turmas pode ter sido sorte também – o que seria mais provável e ao mesmo tempo mais lamentável.
Ainda sobre um ponto fundamental acerca do dilema da filosofia no ensino médio brasileiro: sabemos que quando entramos numa sala de aula para ensinar filosofia no ensino médio estamos dando uma vitória à mordaça imposta por um passado triste da ditadura militar brasileira. Agora, sobre um aspecto maior, digo, sobre o sentido da filosofia: será que, fazendo uso da filosofia no ensino médio, estamos fazendo o certo para com o uso ou vivência da filosofia?
Como ensinar didaticamente algo que não pode se encaixar apenas no didático? Me desculpem colegas da filosofia didática, mas discordo que a filosofia possa ser sempre didática e eficientemente didática, no sentido que dão a isso. A filosofia requer mais o inexplicável que o explicável. É a pergunta, em lugar da resposta e mais o incômodo, em lugar do conforto. Não que isso represente a impossibilidade da compreensão, mas é necessário encarar que compreender filosoficamente passa por incompreensões necessárias e potentes, elementos inexistentes em outros ramos. É preciso excitar a incompreensão como parte do processo da compreensão, destacar na incompreensão do aluno uma parte importante e propulsora do processo filosófico, potente em perguntas.
A filosofia se faz pela multiplicidade de perguntas e sobrevive delas. Para falar de algo bem simples, não posso ensinar a alegoria da caverna de Platão de um único jeito. Há vários modos de lidar com Platão... e isso vale para todas pessoas que puderem ter a alcunha de filósofa ou filósofo. Como levar Hegel para um adolescente, sem cair no pecado das omissões de elementos essenciais “para evitar complexidades”? Até hoje não consigo entender como a filosofia pode ser encaixada, ou reduzida, totalmente numa prova de vestibular, sem que ela mesma seja sacrificada ao ser colocada num painel de classificações de “múltipla” escolha, quase numa analogia caricatural com um jogo de bingo para uma conquista de um prêmio.
Mas aí vejo que o problema ou o limite não está na filosofia, e sim em algumas matizes do ensino brasileiro. A educação como adestramento ou treinamento para um fim prático é uma ressonância de nosso passado em três fases: colonial, imperial e militar. E isso, num contexto de nação dependente, na sombra das denominações clássicas e insistentes, por mais que se combate, como a de “terceiro mundo”. Se a filosofia ainda não se adéqua ao ensino no Brasil, ela, senhora de todas as ciências e também juíza, como muito se diz dela, na verdade, está denunciando antes uma falha no seu ensino. Não adequar-se à escola não é uma incompetência da filosofia ou um limite, mas uma denúncia, uma recusa, própria do seu espírito irredutível a pequenos detalhes que persistem e lhe incomodam.
Na escola, muitas vezes, parece que, para se fazer filosofia, é preciso negá-la como ela é, num esforço, até ingênuo, de misturá-la a um contexto que lhe não é próprio. Assumir esse fato não significa condenar, por exemplo, os livros infantis de filosofia, ou a filosofia no cinema didático, na poesia, no cordel, ou o que seja. Assumir esse cenário é se referir a algo brutal, que não passa pelo viés de articular ou traduzir o pensamento em diversas linguagens acessíveis, artísticas e ricas, mas de estratégias que agem muito mais para mitigar a potência do pensamento.
Há uma espécie de “facilitação” ou “adornamento” da filosofia, que vem de professores dos quais muitas vezes já escutei que, por exemplo, “filosofia não é coisa para jovens”. Mesmo que eles defendam (por outros motivos, talvez) a filosofia no currículo escolar... É espantoso que se escute isso de muitos professores de filosofia... no ensino médio! Parece que eles não atinaram – ou esqueceram se algum dia atinaram – que grandes filósofos da história publicaram suas inquietantes obras na casa dos vinte anos... David Hume, Marx, Schiller, Nietzsche... E quantos tantos outros notáveis não iniciaram suas reflexões em tenra idade? Lembremos de nossas Simones, a Weil e a Beauvoir...
Talvez toda essa verdade genealógica da filosofia, de gerar troncos infindáveis de mentes, pensamentos novos e rebentos epistemológicos seja tão potente que ela ainda seja a matéria mais temida entre regimes históricos difíceis e totalitários, aqueles que insistiram e insisitem no retardamento da percepção e da compreensão do(s) mundo(s)... Aí se vê que é na inquietude, e não na quietude, que se dá o filosofar, assim como não é em um padrão rígido de conhecimento, mas num movimento contínuo, que a filosofia ousar saber algo... Como conduzir a consciência dessa condição ao âmbito do ensino médio brasileiro?