A angústia do ensino: memórias e impressões de uma experiência com a escola e a filosofia - parte II
Ana Monique Moura
Doutora em Filosofia (UFPB/HGB)
29/09/2021 • Coluna ANPOF
A resposta à pergunta sobre se é bom fazer uso da filosofia no ensino médio poderia talvez ser “não e sim”. E essa resposta não é confusa, mas filosófica. “Não” se ela ficar reduzida à repetição de valores ineficazes e normatização do conhecimento, o que implica no seu enrijecimento e consequente desinteresse dos alunos pelo conteúdo. Além disso, diria esse “não” também para o reduzir da filosofia a um “bingo” pré-universitário. Não tiro a relevância que a filosofia possa ter, mesmo nesses padrões, acidentalmente, ou por milagre, e mesmo pelo sua força, para os alunos. O cenário não é, de inteiro, destrutivo. Basta lembrarmos como uma questão que citava Simone de Beauvoir no Enem de alguns anos atrás balançou uma nação inteira. Mas ao mesmo tempo revelou como quase uma nação inteira precisa ainda aprender o sentido do filosofar. Porém, há efetividades, há frutos, há professores que conseguem colocar sementes, há quem plante e colha, apesar dos apesares. E aí vem a resposta, simples e real, com o “Sim”, se consideramos que é possível fazer melhor do que está sendo feito. Aqui até a função de estar professorando ganha algum sentido.
Percebo que o corpo docente se vê muitas vezes na estratégia repetitiva de rastejar até os alunos (ou com eles) na busca pela “facilitação” da linguagem, no sentido do uso da língua e da linguagem, conduzindo-a até o seu esvaziamento. Na verdade isso esconde, talvez, que não se suporta mais sequer a própria linguagem... a língua... e a comunicabilidade... há um cansaço... e é geral... ele não está só na juventude, mas nos próprios professores... a cultura da imagem, embora represente também uma espécie de linguagem (a visual), se alimenta desse cansaço da linguagem especialmente enquanto língua escrita. Assistir e pouco ler, falar e pouco dialogar, repetir e pouco criar. Bem-vindo seria substituir a facilidade vazia, pela poesia e pela criatividade num retorno relação com o filosófico, a qual se perdeu em grande parte.
Recordo que, conversando com o meu orientador de tese, hoje aposentado, ele lembrava das aulas para a sua última geração de alunos e me dizia, lamentando: “eles já chegam na sala derrotados”. Eu acrescentei a esse cenário, na minha imaginação, enquanto ele falava, o olhar compulsivo dos alunos às imagens do celular em plena aula...
A verdade é que não se sabe mais o que fazer, e dar aulas, para muitos professores, se converteu apenas em “cumprir carga horária” numa experiência que oscila entre o tédio e a graça passageira. Esse comportamento não depende, por outro lado, de uma ontologia inata ao professor, pois ela foi roubada pela instituição e pelo lógos neoliberal. Muitos estão nesse cenário sem ter consciência de estarem. Isso mostra não a ausência de qualidade dos professores, mas a cultura do vazio na qual estamos lançados quando se trata de ser professor nesse cenário. A falta de sentido está sendo semeada nas instituições de ensino e poucos são os resistentes a isso. As pessoas estão cansadas e ansiosas não por elas serem incapazes, mas por estarem carregando as pedras das instituições em seus sentidos multipolares nos cenários políticos e sociais inconstantes do país.
Não é difícil vir à memória que, no instituto onde ministrei aula para o ensino médio, havia uma sala dos professores da qual eu esperava que fosse uma espécie de reduto para conversas e trocas de ideias agradáveis e boas prosas com café, mas era um lugar de discussão cansativa, regada por piadas costumeiras e até preconceituosas (especialmente entre homens), assuntos repetitivos sobre carga horária, progressão de carreira, lufadas semanais de frases como “chega logo férias” e “sextou” que só me fazia ver aquilo como um grupo de pessoas insatisfeitas, ansiosas e afobadas por uma fuga ou uma contrapartida de algo que as torturava, lançadas numa banalização de si, aparentemente voluntária e inofensiva.
Não se deveria culpar, incriminando, todos os professores por isso. A sobrecarga que se coloca acima dos ombros de muitos deles, bem como a constante burocratização das instituições os adoecem. É epidêmico e não é todo mundo que tem imunidade. Se é que haja quem tenha! A precarização do trabalho fragiliza a humanidade dos professores e potencializa sua coisificação. Age a favor disso o estado, e conhecemos os atos dessa ópera: precariza a instituição de ensino público pra justificar a não necessidade dela. É daí, já sabemos, que nasce o discurso da desvalorização do ensino público e outras ideias neoliberais, que transformam o direito da educação em um serviço precário, explorável e mal remunerado. E, nesse cenário, falar em atuar, no sofrimento da docência, como vocação, soa como uma piada de péssimo gosto.
Vale lembrar que o índice de problemas mentais e, inclusive, suicídio entre professores tem crescido, e hoje pode-se até comparar, em caricaturas expressivas, as universidades quase como as fábricas chinesas da Apple no que se refere ao contexto mental de seus trabalhadores. É estranha a sensação que sinto, ao conceber que dali saem os professores que formam os jovens. Precarização, burocratização, estranhamento ou alienação, esses são os pilares que contornam a angústia da tarefa e da missão que é ensinar nos parâmetros neoliberais do produtivismo docente e da debilidade discente universitária, que constitui, em boa parte, o futuro corpo docente das escolas. Somado a isso, o velho abismo ente a universidade e a escola.
Não são dos melhores os tempos para os professores e, ainda mais, não o são para quem lida com a filosofia e o seu ensino – não basta termos apenas a constatação de que a filosofia exista nas instituições em tempos, ditos, democráticos – e, vale sempre lembrar, essa grandiosa continua sendo ameaçada diante de projetos que a tornam uma míngua. Tais tempos, tão nossos e tão estrangeiros em outros sentidos, são certamente os que devem nos forçar ainda mais a pensar e a convidar os nossos alunos a não temerem o pensamento. E agora, nos anos vinte do terceiro milênio, temos a adição de uma peste no mundo que marca nosso antes e depois, com a qual devemos ressignificar a própria sala de aula para um contexto não presencial - e o que vem disso naquilo que ultrapassa o neoliberalismo e já atinge o tecnofeudalismo, algo sobre o qual precisamos ainda pensar muito.
Então, cada vez mais, parece viável insistir na seguinte invocação, sem temer suas problemáticas, mas, ao contrário, mergulhando na coragem de, filosoficamente, abraçá-las: enfim,“que venha a dança entre a BELA juventude, essa potência de encarar, com coragem, as novidades à porta, e a FERA, que é pensar, sem pestanejar, a nossa realidade! Sigamos com esse lema rumos às pessoas que desejam aprender algo conosco.