A ascensão da extrema direita na era digital: será mesmo a morte da esquerda?
Wécio Araújo
Professor e pesquisador na Universidade Federal da Paraíba; Membro do GT Teoria Crítica da Anpof
24/04/2025 • Coluna ANPOF
Em colaboração com GT Teoria Crítica
A questão que eu gostaria de analisar neste ensaio pode ser assim introduzida[1]: o forte levante de sujeitos políticos reacionários nas principais democracias ocidentais deste século XXI se apresenta bem melhor articulado do que seus antagonistas no campo da esquerda. Isso ocorre, sobretudo no que diz respeito aos processos ideológicos capazes de produzir práticas discursivas atualizadas com a digitalização algorítmica da experiência social e sua vivência política na esfera pública da era digital.
A extrema direita investe na articulação ideológica entre as redes sociais e os seus usuários de carne e osso em seus lares, escolas, igrejas etc. Com isso, conduz um processo de (de)formação social de uma cultura política que produz, não o clássico neofascismo de Estado do século passado, mas um neofascismo de bolhas ideológicas amplificadas digitalmente na sua capacidade de agir politicamente. Temos Milei na Argentina, Bukele em El Salvador; Trump nos EUA, Erdogán na Turquia e Orbán na Hungria (versão bem-sucedida daquilo que Bolsonaro tentou no Brasil); Benjamin Netanyahu em Israel, Narendra Modi na Índia e Putin na Rússia, com sua autocracia inspirada no filósofo fascista Ivan Illyin. São líderes que trabalham não apenas para ganhar eleições, mas investem na construção do neofascismo como cultura e ethos político na sociedade civil, da família até a empresa e da escola até a igreja. E o fazem surfando estrategicamente no despertar digital-algorítmico da práxis política e seus efeitos ideológicos.
Nesse contexto, identifico não exatamente a morte da esquerda (conclusão que me parece imbuída do conhecido espírito da “lacração”), penso ser algo mais complexo e que não nos permite cravar taxativamente que a esquerda morreu. Eu explico: vejo um profundo atraso da esquerda diante da práxis política do nosso tempo, situação que produz de modo geral, um autobloqueio no sentido de demonstrar capacidade efetiva de atualizar (em forma e conteúdo) suas práticas discursivas de modo a confrontar o neofascismo em tempos de digitalização algorítmica. Este autobloqueio impede a esquerda de reagir à altura da agressiva ascensão da extrema direita. Não obstante, a esquerda não morreu, mas no seu atraso, bloqueou a si mesma enquanto a extrema direita segue sem bloqueios políticos (ocorrem alguns institucionais por meio do judiciário) capazes de efetivamente conter o seu avanço na construção do neofascismo. Esse é um ponto central para entender o atraso da esquerda: não basta salvar a democracia no que diz respeito às regras do jogo do Estado democrático de direito, é preciso construir a democracia como cultura política. Afinal, o golpe de Bolsonaro não logrou sucesso no campo institucional, mas segue firme no mundo real dos corpos de carne e osso conectados digitalmente, desde a feira livre até a pelada de várzea; da favela ao condomínio. Diferente de Lula, Bolsonaro produziu sucessores neofascistas para todos os gostos – tantos que até disputam entre si e já calculam torná-lo dispensável.
Na era digital, a extrema direita demonstra inquestionável habilidade com a forma renovada da ideologia, que não funciona mais como um discurso racional lastreado nos fatos elaborados em princípios argumentativos, como vimos na primeira metade do século XX com forte protagonismo da esquerda – com base na Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkeimer, analisei essa questão em artigo de 2021 para a Revista Ethic@[2]. A virada de chave histórica, iniciada ainda na época dos frankfurtianos, realiza agora um salto qualitativo com a digitalização algorítmica, à medida que a força da ideologia consolida sua transfiguração para uma linguagem imagética que (de)forma a esfera pública sob um ininterrupto espetáculo enquanto terreno fértil para a ascensão neofascista. Este fenômeno diz respeito a como na era digital, as formas tecnológicas de dominação social avançaram na sua capacidade de modelar práticas discursivas na esfera pública. Avanço que acontece de maneira que as ideias que adquirem força política aparecem como uma enorme articulação de imagens regidas pela lógica da sociedade do espetáculo (Guy Debord), alinhada com o neoliberalismo na qualidade de racionalidade política responsável pela “ascensão da política antidemocrática no ocidente”, conforme apontou Wendy Brown em Nas ruínas do neoliberalismo (Editora Politeia).
Sob a tutela do Vale do Silício, que produziu figuras como Elon Musk, bem ao modo como analisa Christoph Türkce em sua filosofia da sensação, a esfera pública foi dominada pela lógica dos disparos ininterruptos de estímulos imagéticos geridos por algoritmos. Este processo (des)educa politicamente os indivíduos ao mesmo tempo em que os modela e conduz ideologicamente, porém, não a partir de elaborados discursos políticos e filosóficos pautados em alguma racionalidade política de base democrática, mas, ao contrário, canalizando suas convicções, paixões e afetos tribais mais profundos. Tudo isso estabelecido acima dos fatos e contra a ética dos direitos humanos e a racionalidade científica. Assim, as práticas discursivas da extrema direita, renovadas na era digital, operam ideologicamente como um eficiente modo de constituição dos indivíduos em sujeitos políticos reacionários na experiência social digitalizada. Deste modo, produz e reproduz na esfera pública, modos de ser que costuram neoliberalismo e neofascismo na forma de uma poderosa práxis política. Analiso essa questão a partir de três aspectos.
i) O peso das fake news, que devem ser compreendidas não simplesmente como a mentira massificada. É mais complexo: na esfera pública digitalizada, as fake News agem como um astuto mecanismo de produção de práticas discursivas detentoras dos seus próprios rituais de verdade, alçados ideologicamente acima da racionalidade científica, da ética dos direitos humanos e da lógica democrática do Estado de direito. O uso tático da ideologia pela extrema direita é sofisticado e envolve não apenas mentir deliberadamente, mas sobretudo produzir seus próprios rituais ideológicos de sustentação da verdade na esfera pública, capazes de formar e deformar as formas subjetivas de os indivíduos vivenciarem politicamente a experiência social. A base cultural dessa mentalidade é o autoritarismo moralista-cristão em sua versão tropical-digitalizada das Cruzadas, pois as espadas desses novos “templários” são as fake News empunhadas nas redes sociais.
ii) A instrumentalização ideológica da racionalidade neoliberal enquanto matriz das práticas discursivas formadoras do sujeito empresarial contemporâneo, garante o terreno fértil na experiência social para semear politicamente o neofascismo sem obstáculos de classe. Neste contexto, a ideologia é a mediação capaz de “harmonizar” a contradição estabelecida entre, de um lado, a completa destruição do Estado social orientada pela precarização máxima do trabalho sob a lógica rentista, e de outro, as formas subjetivas de os indivíduos vivenciarem politicamente essa experiência, de modo que “naturalmente” produz um sujeito político duplamente alienado por esse modo de ser composto, de um lado, por uma visão de si empresarial, e de outro, por uma visão neofascista do outro diferente de si (“nós contra eles”). Afinal, como analisa Gilberto Maringoni[3], “a precarização do trabalho é o terreno onde se fertiliza o fascismo”.
iii) O processo de formação cultural na era digital adquire um caráter de deformação política da esfera pública com enorme força eleitoral e capacidade de institucionalização. No Brasil, a linha de frente da infantaria neofascista atua não a partir das manifestações na rua, mas por dentro das famílias, escolas, igrejas etc., de modo articulado com as redes sociais e as três esferas de governo (executivo, legislativo e judiciário), com forte protagonismo de parte dos evangélicos. A força desses movimentos políticos reacionários e teocráticos está no fato de que, assim como a milícia e o tráfico ocupam o lugar do Estado político no campo da segurança e da ordem social nas comunidades mais pobres, as igrejas evangélicas assumem o papel do Estado social por meio da filantropia acompanhada de proselitismo ideológico, que chega aonde não chegam as políticas públicas.
A extrema direita articula ideologicamente as formas subjetivas de vivenciar politicamente a experiência social na esfera pública com uma linguagem imagética decorrente do estágio digitalizado da Indústria Cultural. No Brasil, diferente da esquerda, este processo conseguiu canalizar para o seu espectro político mandatos evangélicos capazes de mobilizar milhões de fiéis. Com isto, essas bases sociais da extrema direita na sociedade civil obtêm um alcance que nenhum partido político ou movimento social consegue obter na era digital.
Esse atraso da esquerda em parte se explica pela sua fragmentação desarticulada entre (i) carcomidos ideologismos que, apesar das suas variadas denominações, carregam em comum um messianismo de classe (proletária) que sustenta perspectivas revolucionárias ainda da Segunda Internacional; (ii) o modal identitarismo e seu “lugar de cale-se!”; e (iii) o combalido e resiliente lulismo atrapalhado com as próprias contradições, e ainda mais atrapalhado com as contradições que definem a Realpolitik no Brasil. Afinal, a sua estratégia de frente ampla que obteve apertada vitória nas urnas em 2022, não consegue avançar na esfera pública com a prometida “união e reconstrução”.
[1] Sintetizo aqui, sob uma redação inédita e exclusiva para a Coluna ANPOF, a revisão de algumas conclusões obtidas na minha pesquisa, já apresentadas em outros textos.
[2] Disponível em: << https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/82589 >> Acesso: 08. abril. 2025.
[3] Disponível em: << https://www.ihu.unisinos.br/637800-a-precarizacao-do-mundo-do-trabalho-e-o-terreno-onde-se-fertiliza-o-fascismo-entrevista-especial-com-gilberto-maringoni?utm_campaign=newsletter_ihu__26-03-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station >>
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