A busca por uma hermenêutica universal
Janessa Pagnussat
Doutoranda em Filosofia (UFSM) e professora de Filosofia (UFN)
20/02/2024 • Coluna ANPOF
A hermenêutica surge como uma teoria da interpretação que objetiva a busca pelo significado através de uma análise filosófica e metodológica. Também chamada de "arte ou técnica da interpretação" remete ao termo grego hermeneuein que significa expressar, explicar, traduzir, interpretar; ou ao termo hermeneia que significa interpretação. O hermeneuta é aquele que interpreta e transmite seu modo de compreensão de determinado texto ou mensagem – muitas vezes, a interpretação de uma mensagem sagrada. Assim, como um modo de tornar algo compreensível, busca-se interpretar de maneira correta para chegar a um determinado significado.
Friedrich Schleiermacher e Wilhelm Dilthey foram dois importantes filósofos que escreveram suas teorias tendo como base a busca por uma hermenêutica ideal e adequada para a interpretação de textos em geral. Schleiermacher buscava a hermenêutica a partir da teoria da interpretação e tradução de textos antigos clássicos. Ele interpretou os textos de Platão, como por exemplo, o diálogo Íon.
Schleiermacher afirma que sempre estamos envolvidos em um círculo hermenêutico ao qual podemos conhecer o texto como um todo. Mas, para que isso aconteça, torna-se essencial conhecer algumas passagens do texto e o significado das palavras — ao menos de uma para compreender o conjunto delas. Algumas palavras são “transparentes” e fazem com que aquelas obscuras sejam interpretadas de maneira mais fácil. Além disso, nem todas as palavras e frases são obscuras de modo idêntico, “o relativamente transparente leva a esclarecer o opaco”. Por isso, nem sempre todas as palavras são compreensíveis, mas podem conduzir a compreensão daquelas que não são.
Considera-se, portanto, que o texto pode ser entendido em sua completude a partir da compreensão inicial de cada palavra e de cada frase, sendo que, somente assim, será possível chegar à compreensão do texto como um todo. Por outro lado, é possível compreender um texto de maneira aproximada sem compreendê-lo totalmente, e essa compreensão permite decifrar algumas partes em específico. Mas, se o texto for interpretado de tal maneira que em determinado ponto não é mais possível seguir adiante, apesar das tentativas de exegese, isso significa que a interpretação foi iniciada de forma incorreta. O pressuposto é o mal-entendido na leitura de textos, e Schleiermacher aponta para a necessidade de um método que conduza para a hermenêutica universal.
A linguagem precisa ser dominada pelo leitor para a interpretação e compreensão do texto. Porém, isso deve ocorrer em sua totalidade. A partir de uma totalidade do discurso é possível entender todas as partes. Uma frase é constituída por várias palavras que possuem significado sendo que o agrupamento e correlação entre as frases dão sentido ao texto. Não há sentido com as palavras isoladas, elas precisam se correlacionar. Schleiermacher denomina essa correlação de caráter circular da hermenêutica: deve ocorrer um movimento entre o todo e a parte, e vice-versa. Para isso, segundo Schleiermacher, se faz necessário uma análise da linguagem a partir de duas formas de interpretação: a gramatical e a psicológica.
Enquanto a análise gramatical se detém a análise textual, a interpretação psicológica baseia-se na subjetividade do autor. Quanto mais conheço os objetivos do autor, mais próximo estou do significado que o autor quer expressar no texto. Assim, a verdadeira compreensão da linguagem subjetiva presente no texto se dá pelo conhecimento real da intenção do autor. Nessa perspectiva, Schleiermacher aponta para uma reprodução histórica em que há uma interpretação do pensamento do autor ao escrever o texto. Assim, a compreensão pode ser tida como uma espécie de reprodução.
Por isso, o problema hermenêutico não seria resolvido apenas com a leitura do texto. Seria necessária uma compreensão que iria além da mera interpretação do texto. Schleiermacher parte do pressuposto de que não é possível separar um indivíduo do objeto da mesma forma que não é possível chegar à compreensão apenas por indução. Questiona-se, assim, se o que o autor descreve no texto é a mesma compreensão que temos ao ler o texto? É duvidoso dizer que sim, já que precisamos saber o pensamento do autor exposto ali de maneira textual.
Nessa perspectiva, a compreensão, no âmbito filosófico, está ligada à linguagem e ao modo de pensar. É uma maneira de reconstrução histórica dos fatores objetivos e subjetivos que levaram à escrita do texto. Por isso, compreender vai além da arte de interpretação – compreender realmente um texto é verificar corretamente a ideia do texto.
Nesse sentido, Schleiermacher estabelece bases para uma hermenêutica universal. Por outro lado, Dilthey se utiliza dessas concepções para o desenvolvimento de uma hermenêutica geral, em que é preciso uma base de verificação para obter o significado de um texto. Ele parte do pressuposto de que existem dois tipos de compreensão: a compreensão de expressões mais simples, como os discursos; e a compreensão de complexidade mais elevada, como um trabalho artístico. Esta última é geralmente provocada por uma falha da compreensão elementar. Se não consigo compreender uma frase, devo interpretar o livro inteiro. Da mesma maneira, quando não consigo compreender de imediato a ação de uma pessoa, devo interpretar a origem de sua cultura ou sua vida de modo geral.
A interpretação de textos, para Dilthey, não é nada mais que a reconstrução do processo técnico. É preciso acessar o gênio do autor para saber se a compreensão está correta ou não. Nessa perspectiva, Dilthey aponta para uma estrutura universal da compreensão, ou seja, uma estrutura comum a todos os seres humanos. Por exemplo, um texto escrito por João não pode ser totalmente estranho a mim, já que há uma estrutura comum que me permite interpretá-lo. Então, para que haja uma interpretação correta, Dilthey pressupõe que o caráter universal se baseia numa estrutura comum e acessível a todos. Ele estabelece a hermenêutica a partir de uma fundamentação histórica, eliminando a estranheza que ocorre entre o leitor e a linguagem do autor – o que conduz a possibilidade de uma hermenêutica universal.
Dilthey considera que a hermenêutica é essencial para a fundamentação das ciências humanas, por isso, não está ligada somente aos textos escritos, mas a todas as formas de compreensão de vida. Assim, as ciências humanas devem oferecer a base de sustentação do conhecimento científico. Considera que as ciências humanas precisam de uma metodologia própria da “compreensão” (Verstehen), oposta a explicação/interpretação (Erklären). A compreensão, para Dilthey, pode ser definida como um processo interno que ocorre através dos sinais externos apreendidos pelos sentidos. Ele aponta para o argumento de uma hermenêutica universal não a partir do que o autor queira dizer com o texto, mas com o que o texto quer dizer para nós e o modo como ele é compreendido a partir do sentido comum. A subjetividade interfere no significado, já que cada sujeito possui elementos próprios e estes influenciam na interpretação de um texto.
Na obra Introdução às ciências humanas, Dilthey esteve preocupado com a existência de dois campos distintos de conhecimento: as ciências da natureza e as "ciências do espírito", também chamada de ciências humanas. Por mais que ele procure estabelecer essa distinção em sua teoria, encontramos elementos que nos conduzem às aproximações, uma vez que não há nada na realidade que, para ser conhecido, não tenha que ser apreendido como "vivência psíquica" ou consciência individual. Então, ambos os campos científicos são produtos da consciência. É a estrutura da vida psíquica que no indivíduo possui uma "conexão teleológica da vida", um sentido interno, que organiza a realidade no conhecimento e lhe dá um sentido. Esta seria a forma como a consciência age em relação aos fenômenos naturais e humanos.
Considerando o caráter cientificista do projeto de Dilthey, a epistemologia das ciências humanas é a atividade responsável pela articulação das práticas criadas pelo homem para a transformação da realidade histórico-social. A partir da ideia de “vida humana”, não há descontinuidade entre o mundo da natureza e o mundo do espírito, ou seja, o conhecimento advindo das ciências naturais deve ser integrado ao conhecimento produzido nas ciências do espírito. Para tanto, há uma relação inversa àquela proposta pelos positivistas: as ciências humanas não mais devem se submeter às ciências da natureza, mas estas últimas devem se orientar pelo trabalho das primeiras. Nesse sentido, a pressuposição cientificista de Dilthey se detém na seguinte perspectiva: da mesma maneira que o trabalho das ciências naturais sobre o mundo físico acarretou grandes avanços no domínio da natureza, modificando a realidade histórico-social, o conhecimento das leis humanas pode aumentar o controle da humanidade sobre seu destino. Conhecer cientificamente a realidade histórico-social é, para Dilthey, o meio mais eficaz de transformá-la. As objeções à “escola histórica” reforçam a posição assumida por Dilthey: não basta conhecer historicamente; é necessário conhecer cientificamente o mundo histórico.
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