A contradição humana e o negacionismo na necropolítica
Marcelo Vinicius Miranda Barros
Doutorando em Filosofia pela UFBA; membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea e do GT Pensamento Filosófico Brasileiro da ANPOF
20/04/2021 • Coluna ANPOF
Uma pessoa da minha família graduada em Farmácia-Bioquímica, por ser atuante há anos na área da saúde, teve que se vacinar contra a Covid-19. Ela era ainda militante em prol da vacina, com efeito, a sua reação foi a que menos esperava por ela mesma e por todos nós que a enxergamos como uma pessoa imbuída na ciência: a sua atitude foi em querer tomar a vacina só depois de todos tomarem em seu ambiente de trabalho para não correr o risco de sofrer algum efeito colateral, já que, no momento da vacinação, veio-lhe à mente algo que nunca levou a sério: “vacinas contra a Covid-19 são seguras?” e continuou a pensar: “afinal, tenho filhas para criar...”. Este foi o seu relato.
Quem era ela algum tempo atrás que se colocava fielmente a favor da ciência? Quando nos questionamos assim, percebemos que estes questionamentos sobre o outro traduzem critérios com os quais estabelecemos relações em nossa vida cotidiana. Se, por um lado, a reação dessa pessoa é previsível, não será um grande problema, já que fica coerente para nós a situação de nosso encontro passado e o encontro presente com ela e, portanto, procedemos de modo adequado a cada momento. Entretanto, a questão não é tão simples assim: tudo parece se apresentar como sendo o mesmo e como sendo diferente. Tanto é deste modo que, geralmente, tendemos a proporcionar os aspectos que nos levam a acreditar que tal pessoa se trata da mesma pessoa; e ela, por sua vez, nos proporcionar aspectos que lhe dão condição de que se trata de outra pessoa. Isto gera um conflito intersubjetivo.
Esta sensação de conflito, no nosso caso, foi gerada pela tal farmacêutica-bioquímica que mesmo adepta à ciência, temeu a vacina, carregando aquilo que Hegel denominou de Aufheben, que é o processo de superar e negar:
por aufheben entendemos primeiro a coisa que ‘hinterwegräumen’ [ab-roga], ‘negieren’ [negar], e por conseguinte dizemos, por exemplo, que uma lei, um dispositivo são ‘aufgehoben’ [ab-rogados]. Mas além disso significa também o mesmo que aufbewahren [conservar] e nesse sentido dizemos que a coisa está ‘wohl aufgehoben’ [bem conservada][1].
No entanto, no pensamento hegeliano, a negação não é a anulação de algo anterior, ao contrário, é o desvelamento de como duas coisas estavam em profunda relação de interdependência. Então, mesmo apoiando a ciência, houve a negação desta. Neste caso, a tal farmacêutica é e não é ao mesmo tempo a mesma pessoa. Isso parece contraditório para lógica formal aristotélica, porém, no mundo prático hegeliano, é totalmente possível.
Normalmente entendemos que não é possível pensar algo que é e não é ao mesmo tempo sobre o mesmo aspecto. Entretanto, a questão é que Hegel não está discorrendo sobre a contradição lógica ou formal, mas sobre a contradição “real”, efetiva ou objetiva que é contingente. A tal farmacêutica-bioquímica mostrou isso ao acreditar na ciência ao mesmo tempo em que temia a vacina. O contrário também ocorreu: o fato de certos militantes negacionistas da ciência agora estarem se vacinando. Por exemplo, o ex-presidente norte-americano Donald Trump e sua esposa se vacinando em segredo antes de deixarem a Casa Branca. Trump, durante meses, se negou a usar até uma máscara para se proteger da Covid-19. Por incrível que pareça, este tipo de raciocínio é bem mais comum do que se imagina.
Nós, normalmente, trabalhamos em uma relação de identidade entre o que já vimos e o que vemos agora. Se alguém não nos reporta a nenhuma imagem que nos permita afirmar que é “igual”, então, é preciso assimilar o desconhecido. Mas nem por isso a tal pessoa é outra totalmente distinta, como Freud é distinto de Dostoiévski, por exemplo. A falta desta diferença radical se deve ao fato de que as coisas mudam sem deixar de conservar algo. É o Aufheben de Hegel. É como se fosse possível dizer que nem a realidade muda muito e menos ainda que ela permaneça. É assim que surgem situações, pessoas, etc., que geram dificuldades para nós ao tentarmos estabelecer uma relação entre elas, as quais aparentam totalmente contrárias umas das outras.
É aqui que entra o desafio humano para tentar superar aquilo que parece a princípio ser contraditório, isto é, achar uma maneira de apreender algo que faça que ela seja a mesma pessoa ao mesmo tempo em que a apreenda como outra, permitindo que a diferença não faça com que desapareça a identidade. E isso não é somente de nós para com os outros, como também de nós para conosco mesmo. A velha expressão popular “eu não me reconheci” carrega um caráter existencial muito forte ao estilo de superação e negação (Aufheben). “Não se reconhecer” é também um ato negacionista.
Negacionismo é a alternativa de negar uma realidade como maneira de esquivar de algo desconfortável. Geralmente, o que comete alguém a negar algo tão evidente, como a importância da vacina contra a Covid-19, é o fato de ter para si que aquela verdade é desconfortável, o que pode ser uma crise existencial de um temor do vir-a-ser da vida. Como também a existência implica em imanência das condições materiais — trabalho, renda, saúde, afetos, reconhecimento... —, então a vida difícil de famílias pode ser condição para o negacionismo. Ao ver que não há uma casa ou, devido à imposição do trabalho, não poder fazer o isolamento social, membros de certas famílias geram conflitos consigo mesmos por estarem na incerteza, portanto, os questionamentos aparecem e permitem a negação. Se o negacionismo é negar uma realidade, neste caso não é diferente: por exemplo, é preciso negar a impossibilidade de um isolamento social, senão o indivíduo se amedronta diante de uma morte iminente que, aqui, é acarretada por um vírus. O negacionismo não é somente uma ideologia política e abstrata, ele implica também em condições materiais. Em uma situação familiar precária, não é necessário ser bolsonarista ou ignorante para ser negacionista; uma pessoa nesta condição pode muito bem ter se comprometido com a importância do isolamento social no mais fundo do âmago do seu ser e ao mesmo tempo afirmar que a Covid-19 não passaria de uma “gripezinha”, e nem por isso se trata de duas pessoas totalmente distintas.
Em uma evidente política que está sendo colocada como opção aos trabalhadores mais carentes a escolha entre morrer de fome ou de Covid-19, não é muito difícil ver muitos deles como negacionistas. Nem por isso podem ser taxados de ignorantes. Neste plano político há uma modalidade de afeto: o desamparo. O conceito de necropolítica de Achille Mbembe — no Brasil: “violência estrutural” — escancara a contradição humana. O Aufheben ocorre em vários momentos da vida, mas ele é bem evidente na necropolítica, que, por sua vez, mostra que a pessoa que é e não é se encontra contraditória na lógica formal, contudo, na lógica concreta, ela é um fato. Em uma situação em que decidem quem podem morrer e quem podem viver, em uma condição que não há como realizar o isolamento social, em um evento em que o medo vem como “tenho filhas para criar”, ou pessoas convivendo em casas de um cômodo nas periferias brasileiras, não há espaço para o princípio da não-contradição aristotélica, abrindo, assim, o lugar para o Aufheben hegeliano.
Então, além da afirmação já dita no nosso senso comum mais elitista de que o negacionismo está aí porque a ciência é elitizada e o brasileiro, em geral, não tem formação científica, há também um fato mais elementar de que a pandemia nos induz ao paradoxo da nossa existência, pois é tudo sempre em um materialismo dialético, isso no sentido amplo do termo, em que a matéria está em uma relação dialética com o psicológico e o social, permitindo, por exemplo, o contraditório que é ver a tal farmacêutica-bioquímica — ciente do valor e da sua militância científica — temer a vacina, ou o negacionista científico desejar se vacinar. Ao circularem os bens materiais, circulam também afetos.
O negacionismo nem sempre é falta de informação ou de formação científica, como é também, além disso, fundamentalmente um reflexo de uma necropolítica. Numa palavra, por mais remotas da realidade que pareçam estar, as ideias negacionistas convêm a um projeto pragmático, já que é sendo na forma como a sociedade se organiza é que se produz materialmente as condições de se pensar e agir. Nem sempre se é negacionista por ideologia abstrata ou por ignorância, mas sim por necessidade. A situação monstruosa das condições materiais de muitos, em si, já tenderia a levar as pessoas ao um mecanismo psíquico de defesa, a uma relativização negacionista de sua seriedade. Isto não tem necessariamente a ver em ser bolsonarista ou ignorante, estes fazem parte de um sistema maior, afetivo e mais elementar que é a necropolítica.
[1] HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). In: A ciência da lógica. Vol. I. São Paulo: Loyola, 1995, pp. 194-195.