A Filosofia enquanto estudos e práticas
Silvio Ricardo Gomes Carneiro
Prof. de Filosofia da UFABCCoordenador do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar
07/02/2017 • Coluna ANPOF
É com apelo de urgência que remeto à comunidade da ANPOF estas palavras. Pois a Filosofia ganha novas cores com o último texto aprovado da reforma do Ensino Médio, a Medida Provisória 743/2016, atualmente encaminhada para votação ao Senado no Projeto de Lei de Conversão 34/2016 (PLV 34/2016).
No novo texto, o art. 3º recebe o §2º que afirma: “A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia”.
Com isso, pretende-se recuperar o componente da Filosofia (e das demais áreas citadas) na reforma do Ensino Médio, mas sob a marca da “obrigatoriedade” de seus “estudos e práticas”. Uma nova coloração, pois reconhece a importância da filosofia para a formação dos estudantes secundaristas, não mais enquanto “disciplina obrigatória”, e sim enquanto “estudos e práticas”.
Tal estatuto só pode ser compreendido à luz da arquitetura curricular que se traça no PLV 34/2016.
A lei. Ora, a lei...
O primeiro passo a se entender é a inversão dos fatores legais. Praticamente, os princípios regimentais que orientavam a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (LDB), como a formação cidadã e cultural das novas gerações, passa a ser reduzida à medida de uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC). É verdade que já na LDB/1996, o art. 26 já previa a necessidade de uma BNCC a ser complementada em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar. Além disso, como resultado de discussão da última CONAE (Conferência Nacional de Educação), o Plano Nacional de Educação estabelece em sua estratégia 7.1 a implementação de uma BNCC “com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local” (BRASIL, Lei 13005/2014).
Desde então, muita água rolou por debaixo das pontes para o futuro. A pátria educadora seria revista pela ordem e pelo progresso. Após o impeachment, a nova secretaria executiva decretou rapidamente um comitê gestor da BNCC e da Reforma do Ensino Médio (Portaria do MEC 790/2016). Por decreto e sem nenhum diálogo, retira todo o texto do Ensino Médio levado à consulta pública sob o pretexto de uma revisão de seu conteúdo sob a necessidade de uma reforma. Movimento a que poucos de nós estivemos atentos; movimento anterior que, por si só, tornaria questionável o caráter de urgência e de emergência que, alguns meses mais tarde, se apresenta na MP 743/2016, lançada alguns meses depois; movimento que faz questionar se a urgência de tal medida já não estava previamente planejada por trás do palco, nos primeiros dias de reorganização do MEC.
Retirando o debate jurídico sobre a legitimidade da MP por uma crise descrita unilateralmente, voltemos ao que nos interessa aqui: a inversão que confere força de lei a uma peça que deveria ser regulamentada por toda uma rede de princípios que faz da educação um direito social. No novo texto que altera a LDB, o documento da BNCC ganha um protagonismo sem precedentes. Regulamenta não apenas os componentes curriculares, como também as licenciaturas, conforme notamos no artigo supracitado, bem como no Art. 7º, § 8º da atual PLV 34/2016. Sem falar no protagonismo que organiza processos nacionais de avaliação, conforme previsto no Art. 35, §5º, que estipula a BNCC como referência para tais processos nacionais de avaliação.
Tais movimentos não destituem, claro, a LDB de sua função diretiva e de princípios. Mas, no frigir dos ovos, basta acompanhar as políticas de educação para saber o que tais alterações na LDB significam. Não raro, os representantes da Secretaria Executiva do MEC justificavam que a Filosofia estaria presente na matriz curricular das escolas junto ao que se referenda na BNCC.
Uma vez compreendida a importância da BNCC na recomposição da Filosofia e da Sociologia e, sobretudo, compreendido o modo como estas disciplinas foram pensadas a partir de um comitê gestor fundado pela portaria do MEC em 28 de julho de 2016, podemos pensar um pouco mais sobre o que significa a presença da Filosofia enquanto estudos e práticas previsto na PLV 34/2016. Tudo depende do que será decidido pelo petit comité do Comitê Gestor criado pelo MEC, cuja voz não leva em conta o amplo debate formado previamente e que, no caso da Filosofia, gerou um currículo aberto para os 3 anos do Ensino Médio no documento levado à consulta, antes da intervenção do atual MEC.
Articulemos aqui um segundo passo, que visa o encontro da matriz filosófica com um ensino médio dividido por áreas de conhecimento.
Estudos e práticas na arquitetura do Ensino Médio reformado.
Dentre as idas e vindas da MP para a votação, é preciso acrescentar dois elementos para tal arquitetura da reforma. Primeiramente, a antiga BNCC previa um curso de Filosofia para 3 anos. Com a reforma este projeto será reduzido pela metade. O esforço para o retorno da disciplina filosófica aparece em grande parte das 586 emendas parlamentares número que, por si só torna questionável a reforma do Ensino Médio por uma medida provisória. O resultado final foi inserir o parágrafo que reconhece a obrigatoriedade de seus estudos e práticas.
Cabe questionar: como será feita a redução pela metade da matriz filosófica? Como o petit comité de gestores do MEC está articulando isso? Há um silêncio aterrador por parte do MEC. O movimento de ruptura com o processo anterior é notável.
O impacto de tal arbitrariedade é imenso, gerando bizarrices curriculares nas redes pública e privada de ensino que, na tentativa de antecipar o próximo passo, ora reduziu a carga horária das disciplinas, ora levou à criatividade vazia e econômica no corte de inúmeros professores de filosofia e sociologia, tornados aparentemente dispensáveis para a nova matriz curricular que se anuncia. Não são poucos os relatos de professores do ensino médio a respeito de tal impacto. Disciplinas que se mesclam, inseguranças nas contratações, arbitrariedades curriculares por parte dos coordenadores pedagógicos um movimento previsível quando mudanças de tal envergadura chegam aos trotes do decreto.
A Filosofia nas ciências humanas e sociais aplicadas
Um segundo elemento vem da nova configuração das áreas de conhecimento. Sem muitas justificativas no seu relatório, o senador Pedro Chaves altera a nomenclatura das ênfases. Outrora repartidas entre linguagens, matemática, ciências naturais, ciências humanas e formação técnica profissional, agora tais áreas recuperam aparentemente uma articulação já conhecida nos documentos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Respectivamente, as áreas de conhecimento passam a se chamar: linguagens e suas tecnologias, matemáticas e suas tecnologias, ciências naturais e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e, sintomaticamente sem alterações, formação técnica e profissional.
É preciso questionar o destino das ciências humanas nesse percurso. Por que não operar, como nas demais áreas um vínculo com as tecnologias na hipótese de que tal relação teria como base os PCN? Compreender a filosofia no corpo das ciências humanas e sociais aplicadas passa a configurá-la de modo bem diverso de suas inúmeras possibilidades. Já é questionável afastar a Filosofia da linguagem, da matemática, das ciências naturais e do mundo do trabalho. Ao compreendê-la no escaninho das ciências humanas e sociais aplicadas, qual valor de conhecimento passa a receber seus estudos e práticas?
Na arquitetura reformada do ensino médio, o significado da obrigatoriedade dos estudos e práticas da Filosofia (bem como dos demais conteúdos curriculares presentes nesta artimanha legal) é seu esvaziamento na formação estudantil. O decreto simplesmente retira do horizonte os anos de debate que consideram a Filosofia disciplina fundamental para a formação cidadã, algo presente nas manifestações de algumas emendas parlamentares, muitas delas sustentadas pelo Parecer CNE/CEB nº 38/2006 que recomenda a obrigatoriedade da disciplina na matriz escolar, uma vez que se trata do valor para um processo educacional consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que se deseja sejam cidadãos éticos, críticos, sujeitos e protagonistas.
Além disso, se o objetivo do MEC fosse realmente estabelecer o protagonismo juvenil, bastaria fornecer as ferramentas para isso. A Filosofia não é exclusiva, mas é uma delas. O desprezo da matéria enquanto estudos e práticas corresponde ao modo como muitos pretendem resolver a crise da educação: um pretenso protagonismo pelo consumo de um cardápio curricular.
Organiza-se, então, uma arquitetura perversa de ensino, pautada pelo cardápio de conteúdos, fragmentados em uma falsa flexibilidade (sem retrocessos na escolha feita pelo estudante) e mensurados pelo desempenho de alunos e professores a partir de uma prova nacional. Fórmula já testada e levada à críticas em muitos países modelos, como os EUA, cujos índices não são exemplares sequer no rankeamento de testes como o PISA. Com efeito, como havia mencionado, trata-se de uma reforma sem princípios, resumida às metas que fazem da escola uma formação pelas sombras de conhecimento projetadas na caverna.
Eis, pois, o significado da obrigatoriedade dos estudos e práticas da Filosofia: uma forma vazia de discurso contrária a toda força da dúvida, da real flexibilidade que opera a educação de um sujeito em suas questões para além das metas inalcançáveis de um delírio burocrático.
Toda esta matéria será decidida sem o devido cuidado, sem a atenção com a comunidade de pesquisadores e de professores de Filosofia. O Senado já anunciou a votação da PLV 34/2016 como sua prioridade, correndo contra o tempo, pois o prazo de validade da MP é 02 de março. Uma pressa sem sentido, uma pressa que silencia, uma pressa que apenas repete a fugacidade das mudanças em educação, e basta acompanhar a história da educação no Brasil para saber os efeitos nefastos da redução do direito social à educação à forma-mercadoria de todos pela educação.
A despeito disso, sabemos que quase uma década de obrigatoriedade da Filosofia (e demais disciplinas) na matriz escolar fez a diferença. Pensar a partir daí viabiliza uma revolução na educação, talvez o maior temor de quem está silenciando as vozes da educação por decreto.
O episódio mais recente da questão sobre o Esclarecimento em Kant na redação da FUVEST é um indício bem-vindo da importância do debate filosófico na formação. Não apenas por evidenciar a importância de conteúdos filosóficos para a formação de nossos estudantes, mas para gerar um diálogo entre gerações frequente nas salas de aula de Filosofia . Perguntar se o homem (sic) saiu da menoridade na dissertação dessa avaliação (dado o lugar, ainda que questionável, da redação nos vestibulares) demonstra o quanto a disciplina da Filosofia deve ser preservada e não silenciada sob a forma vazia de estudos e práticas. Esta questão avalia o candidato em suas habilidades argumentativas, mas lhe permite expressar suas perspectivas sobre a humanidade. Diga-se de passagem, exercício representativo do ensino de Filosofia no cotidiano de muitas salas de aula. Algo que não interessa à reforma de gabinete.
ANPOF (2017-2018)
07 de Fevereiro de 2017