A filosofia não vai à escola

Manoel Pereira Lima Junior

Professor da rede estadual do estado da Bahia; doutor em Filosofia pela UFBA; membro do GT Filosofia e Raça

26/11/2024 • Coluna ANPOF

A filosofia, como nos foi ensinada por décadas passou por várias escolas: “escola de pitagórica”, “escola platônica”, “escola aristotélica”, “escola estoica”, “escola epicurista”, “escola patrística” e a “escolástica” – para não falar dos modernos. Apesar dessa longa trajetória – nem falei da filosofia africana, da filosofia hidu, da filosofia chinesa, ou da filosofia indígena – não querem deixar a filosofia ir à escola no Brasil.

Há uma tradição negativa no Brasil de desvalorizar o ensino de filosofia na educação básica. Depois de vários anos fora do currículo escolar, no ano de 2008 a filosofia, por meio da lei 11. 684, voltou a ser obrigatória no currículo da educação básica. Não faz nem 20 nos da obrigatoriedade do ensino de filosofia na educação básica brasileira (16 anos precisamente) e com a reforma do ensino médio já fizeram várias tentativas de retirá-la mais uma vez do currículo escolar. Para ela não sair completamente, a lei 13. 415/17 tornou a filosofia (juntamente com a sociologia) em “ciências humanas e sociais aplicadas”, descaracterizando completamente o tipo de conhecimento técnico que é a filosofia (e a sociologia também).

Essa pirotecnia dos legisladores brasileiros está associada à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que pretendia criar uma área de formação geral básica (FGB) com 1800h e 1200h de itinerário formativo (IF), somando 3.000 horas nas 3 séries do ensino médio. Não deu certo. A filosofia (e as sociologia) foi quase que reduzida a conteúdo transversal. Por exemplo, na Bahia, tinha-se 1 hora-aula (50 minutos) para filosofia em cada série do ensino médio (em alguns estados da federação não tinha filosofia em todas as séries do ensino médio) e 3 horas-aula para uma disciplina chamada de “Identidade e projeto de nação” (IPN). Desse modo, alguém que passou anos fazendo uma graduação em filosofia, passou por um mestrado em filosofia e por um doutorado em filosofia teria de dar aula sobre o que ele nunca estudou – a política educacional brasileira fez a formação de educadoras e educadores da educação básica tornar-se um nada.

Em 31 de julho de 2024 tentaram corrigir o erro, fazendo a “reforma” da reforma do ensino médio por meio da lei 14. 945/24 que ampliou a carga-horária da formação geral básica para 2400 (mínimo) e 600 horas para os itinerários formativos – insistiram nos itinerários.

Bem, no estado da Bahia a secretaria de educação fez uma consulta pública para legitimar o modelo curricular que se estava propondo no estado. Nesse modelo proposto, a filosofia (sociologia e arte também) permanece com 1 hora-aula, isto é, a carga-horária de geografia e história (área de humanas) aumentou, mas filosofia não. Na verdade, todos os componentes curriculares tiveram sua carga-horária aumentada à exceção de filosofia, sociologia e arte. O que demonstra um equívoco monumental na opção apresentada pela secretaria de educação do estado da Bahia (acredito que outros estados da federação passem por problemas semelhantes).

Estou escrevendo esse texto para tornar público esse absurdo que causa danos irreparáveis par a vida intelectual dos estudantes de ensino médio na Bahia e no Brasil de modo geral. Esse não é um problema apenas dos professores da educação básica, diz respeito também às graduações e pós-graduações de todo país. Afinal, afetada a educação básica a qualidade das graduações e pós-graduações também despenca. Além disso, o interesse pelos cursos de graduação e pós-graduação tendem a diminuir, uma vez que as possibilidades de trabalhar com filosofia diminuem imensamente – na prática, qualquer um poderia dar aula de filosofia.

Começamos um “coletivo” na Bahia com professoras e professores de filosofia e sociologia. Construímos nova proposta de matriz curricular e novos componentes curriculares. Encaminhamos à secretaria de educação, tivemos reunião com a comissão de educação da assembleia legislativa, conversamos com o Fórum de Educação do estado e, em alguma medida, o diálogo foi aberto. A superintende de política educacional da Bahia nos convidou para um grupo de trabalho afim de encontrarmos uma solução juntos para diminuir o prejuízo (mas não passou de uma conversa). Nada está garantido.

Nesse sentindo, quero convidar toda comunidade filosófica nacional (da educação básica à pós-graduação) para começarmos um movimento nacional que consolide a filosofia como componente curricular obrigatório, tendo carga-horária igual ou superior a 2 horas semanais. É um contrassenso a principal lei da educação brasileira (LDB 9394/96), assim como a lei 14. 945/24 (do “novíssimo” ensino médio) e as novas diretrizes curriculares para o ensino médio no Brasil fundamentarem-se epistemicamente e eticamente na filosofia e reduzirem a filosofia a quase nada no processo de forma da juventude brasileira. Como tais leis e documentos oficiais podem defender valores éticos e democráticos, raciocínio crítico e liberdade de pensamento sabotando a filosofia? Como falar sobre direitos humanos sem uma boa fundamentação filosófica sobre “justiça”? Como combater “fake news” com uma reflexão bem fundamentada sem uma análise do conceito de “conhecimento”?

O fracasso da educação básica no Brasil, em larga medida, passa pela equivocada opção de favorecer uma educação tecnicista, que desvaloriza disciplinas como filosofia, sociologia e arte. O modelo tecnicista (maldisfarçado de liberdade de escolha – nos itinerários formativos) também é cruel com os estudantes das camadas econômicas desfavorecidas, pois, estudantes das redes privadas têm mais horas de formação geral básica e fazem no contra-turno as disciplinas dos itinerários formativos.

Educação é um bem coletivo. O conhecimento é um bem humano que deve ser bem distribuído sob pena de gerar desigualdades epistêmicas gravíssimas, aprofundando o fosso social. As melhore formações tendem aos melhores salários. É preciso discutirmos a distribuição equitativa e justa dos bens epistêmicos no Brasil diante do cenário apresentado pelo “novo” ensino médio.

DO MESMO AUTOR

O contrato sócio-racial brasileiro (em memória de Charles W. Mills)

Manoel Pereira Lima Junior

Professor da rede estadual do estado da Bahia; doutor em Filosofia pela UFBA; membro do GT Filosofia e Raça

12/05/2022 • Coluna ANPOF