A filosofia tem que ser mais do que homens brancos

Aline Matos da Rocha

Doutora em Filosofia (UnB)

15/12/2022 • Coluna ANPOF

"Philosophy has to be about more than white men. In: The Guardian, 2015" [1]. 

Texto de Minna Salami. Tradução para uso didático de Aline Matos da Rocha

Por todo o país, estudantes têm “desmantelado a casa do senhor”. Eles/elas não estão esmagando os departamentos de seus coordenadores, mas exigindo uma revisão de seus currículos predominantemente brancos, predominantemente masculinos. Da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCL) à Faculdade de Economia e Ciência Política de Londres, passando por York, Warwick, Nottingham e Kent, a campanha [2] liderada pelos/pelas estudantes “Why Is My Curriculum White?” [3] tem atraído milhares de pessoas preocupadas que o conteúdo dos cursos nas universidades de todo o país reflete o domínio dos brancos e sub-representa pessoas negras. Também, já não era sem tempo. A demografia da Grã-Bretanha está mudando. Etnia, religião, herança, língua são cada vez mais parte da discussão nacional. As universidades desempenham um papel fundamental na formação do pensamento e das políticas que podem aliviar as tensões atuais e fomentar uma cultura de justiça e igualdade. No entanto, elas só podem fazer isso se elas mesmas forem justas e iguais.

Os críticos da campanha [4] argumentam que ela prejudica a liberdade acadêmica; que todo conhecimento tem o mesmo valor; que estudantes devem transcender o pano de fundo cultural no intuito de expandir o conhecimento; e que há muitas boas razões para que um currículo de filosofia, economia ou história esteja repleto de trabalhos de homens brancos mortos. Razões muito boas, de fato: algumas delas incluem o assassinato sistêmico de filósofas, massacres de alguns de nossos primeiros pensadores, como os astecas; e a destruição de antigas cidades africanas que iluminam o pensamento de antigas civilizações.

Isto não é tudo. Quando se trata de filosofia, por exemplo – uma disciplina particularmente importante, uma vez que nosso mundo é construído sobre ideias –, o trabalho de homens brancos, mortos ou vivos, domina o campo. Isto não é simplesmente porque homens brancos têm contribuído com um trabalho profundo, mas também devido à relação gritante, e ainda tacitamente silenciosa, entre estruturas de poder e conhecimento. É por isso que o complexo corpo de trabalho da professora de filosofia Angela Davis sobre o sistema de justiça social não influenciou estudos filosóficos contemporâneos sobre as prisões da mesma forma que o trabalho de Michel Foucault tem influenciado sobre o mesmo tema. Ou porque o filósofo etíope Zera Yaekob, que muito antes de Nietzsche declarar que “Deus está morto”, ousadamente criticou a religião organizada em seu tratado de 1667, Hatata, onde ele também disse: “Aquele que investiga com pura inteligência... descobrirá a verdade”. Mas apesar de promover a razão desta forma, ele não é chamado de pai da filosofia moderna, Descartes é.

É por isso que Oríkì – em resumo, performativa, espiritual e filosófica “poesia de louvor africana” sobre uma infinidade de temas universais – são considerados mitológicos, enquanto o poema épico mitológico de Homero, a Ilíada, é filosofia. E por que todos estão familiarizados com filósofos como Montesquieu, Maquiavel e Marx, mas não com Ibn Khaldun, cujo pensamento sobre o todo, desde o ambiente físico até a história cultural e os laços sociais foi pioneiro.

Em suma, parece que quando um homem branco pensa sobre o significado das coisas, qualquer coisa, é filosofia, enquanto filósofos como os citados acima raramente são discutidos nas universidades britânicas. Com certeza, não devemos descartar o pensamento branco, ocidental, ou masculino simplesmente com as premissas de que ele é branco, ocidental ou masculino. A busca pelo conhecimento deve se esforçar para transcender cultura e etnia – um filósofo indiano não é necessariamente mais adequado para explicar o mundo a um estudante indiano simplesmente porque eles compartilham a mesma nacionalidade. Mas não é essa a questão.

A questão é que imaginar que apenas homens brancos se engajam na busca pelo conhecimento – como o currículo atual insinua – é ridícula. O “cogito” de um homem é a “máscara branca” de outro, se eu puder ser existencialista. O que é chamado de “filosofia” nas universidades britânicas é na verdade “filosofia do homem branco ocidental”. E, francamente, é muitas vezes míope e verborrágica. Como diz um dos mais importantes filósofos da Europa, Michael McEachrane: “Os conceitos filosóficos modernos de personalidade, direitos humanos, justiça e modernidade são profundamente moldados pela raça”.

Imagine um futuro onde um(a) estudante interessado(a), digamos, no humanismo, encontre uma gama global de pensamento sobre o tema e não um pensamento estreito e regional. [Portanto], um ambiente tão criativo e fértil não só é possível, como é o único que pode devolver à filosofia o seu digno propósito. Isto é, a investigação de toda a existência humana.

[1] Este texto foi publicado sete anos atrás, mas as questões que analisa continuam ressoando atualmente.

[2]  Cf. https://www.subu.org.uk/mycurriculum/

[3] Em tradução livre: “Por que meu currículo é branco?”. 

[4] Cf. In defence of the ‘white’ curriculum (Em defesa do currículo “branco”). Disponível em: https://www.spiked-online.com/2014/10/22/in-defence-of-the-white-curriculum/#.VQw-kil_szU

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