A historiografia da desqualificação da filosofia brasileira

John Karley de Sousa Aquino

Professor de Filosofia do IFCE

09/08/2024 • Coluna ANPOF

A tese de que no Brasil não existe e nem poderá existir filosofia brasileira remonta ao século XIX, aos autores Tobias Barreto e Silvio Romero. Tobias Barreto na obra “Questões Vigentes”, em um artigo dele sobre o Kant afirma o seguinte, que “não há domínio algum da atividade intelectual em que o espírito brasileiro se mostre tão acanhado, tão frívolo e infecundo como no domínio filosófico” (BARRETO, 1926, p. 245). Ou seja, brasileiro é inapto para a filosofia. Ou ele não faz ou quando ele faz, ele faz muito mal feito. Silvio Romero, um continuador e discípulo de Tobias Barreto, é considerado por Júlio Canhada o iniciador da historiografia sobre a filosofia brasileira. Ele afirma que o livro de Silvio Romero Filosofia no Brasil de 1878, é o texto inaugural da historiografia sobre a filosofia brasileira (CANHADA, 2020, p. 38). Neste texto, o que é que defende o Silvio Romero? Ele defende que no Brasil não existe filosofia, pois por aqui as ideias não evoluem uma das outras. Não haveria o que ele denomina de seriação das ideias, pois nossas ideias filosóficas ao invés de surgir uma das outras, como os galhos de uma árvore que vão surgindo a partir dela mesma, seriam todas importadas da Europa (ROMERO, 1969, p. 32).

Considero muito justa a crítica de Romero, pois em matéria de filosofia a maioria de nós não cria ideias, mas importa ideias alheias e por conta disso ao invés de fazer as ideias nativas surgirem umas das outras, acabamos fazendo com que ocorra um emaranhado de ideias sem relação entre si, carentes de conexão. E outra coisa, além dessa falta de seriação, faltava originalidade. Não seriamos muito originais na criação de ideias. Mas por qual motivo não conseguimos criar ideias e fazer com que as nossas ideias continuem umas das outras? Ele vai dizer que é por conta da nossa falta de aptidão. Aí nos perguntamos: essa falta de aptidão seria natural? Acreditamos que para um pensador de tendências racista como o Silvio Romero tal falta de aptidão seria natural do brasileiro devido à mestiçagem[1]. Apesar de ser um autor muito interessante e polêmico, Silvio Romero tinha essa ideia de que por conta da mistura de raças, especialmente com o sangue do negro, nós teríamos características inferiores. E ele sem citar isso fala que o Brasil tem uma inaptidão para o pensamento rigoroso. Ele não fala se é natural ou não, mas nós interpretamos que a partir da leitura que ele faz da questão racial, que para ele seria algo natural.

Antes de prosseguirmos, gostaria de abrir um parêntese e fazer um comentário sobre algumas ideias do Murilo Seabra, que foi um orientando do professor Júlio Cabrera (UNB). Ele escreveu um texto muito interessante e concedeu uma entrevista e em ambas as oportunidades tratou do que ele chama de “preconceito inconsciente que temos contra a competência dos agentes epistêmicos subalternos” (VERÇOZA, SEABRA, 2020, p. 119). Seabra recorre ao conceito de injustiça epistêmica da filósofa Miranda Fricker[2] para pensar como lidamos com a filosofia brasileira e todo o pensamento subequatorial. Além disso, ele lançou um livro chamado Oftalmopolítica: um problema com a visão da filosofia brasileira (2021), que trata da nossa percepção sobre a filosofia. Ele empreende uma pesquisa empírica em que demonstra que existem preconceitos contra autores dependendo do seu gênero, raça e nacionalidade e até mesmo com o nome do autor. Seabra identificou que tem uma maior chance de um autor ser lido se ele for homem e se seu nome não é nem em português nem em espanhol. Se o nome do filósofo é João da Silva, por exemplo, você tem muito menos chance de seu texto ser lido do que se o seu nome for Roland Corbisier, que é um brasileiro, mas o nome dele é francês. Então se o seu nome é germânico, ou inglês, ou francês, você tem muito mais chances de o seu texto ser lido do que se o seu nome for João Pereira[3]. Ele chama isso de preconceito epistêmico, quando o texto sequer é lido, pois já achamos que o texto por conta do nome do autor ou do gênero do autor é um texto de qualidade duvidosa.

Fechando o parêntese e retornando a questão da historiografia filosófica iniciada por Silvio Romero. Então, o que é que o Júlio Canhada fala sobre isso? O Silvio Romero, segundo ele, é o iniciador de uma tradição historiográfica sobre a filosofia brasileira e o que diz essa tradição historiográfica? Diz Júlio Canhada que ele criou “uma espécie de senso comum historiográfico o qual a produção filosófica brasileira seria essencialmente falha” (CANHADA, 2017, p. 10). O quê que podemos concluir disso? A partir dessa tese do Silvio Romero, podemos interpretar de que ou não existe filosofia brasileira, que é o que a maioria da comunidade filosófica brasileira supõe ou aceitamos que existe filosofia no Brasil, mas que essa filosofia é de péssima qualidade. O interessante é que nunca nos perguntamos se realmente essa filosofia é de péssima qualidade, porque dificilmente lemos esses autores do século XIX e mal nos lemos uns aos outros. O que fazemos aqui é comentário de texto e sequer priorizamos os comentários de texto que os nossos conterrâneos fazem.

Temos que reconhecer que a tradição historiográfica iniciada por Silvio Romero, concordemos ou não com o que ele falou, se tornou a narrativa dominante, usando os termos de hoje. Ele criou uma narrativa e a maioria de nós acredita nela, e a continuamos até os dias atuais. Então, quando dizemos que não somos filósofos e que no máximo somos professores de filosofia, estamos nada mais nada menos do que legitimando e continuando a narrativa do Silvio Romero de que temos uma inaptidão para a filosofia. Acreditamos no que ele disse e assumimos como verdade axiomática.

Se destacam como continuadores dessa tradição historiográfica da nossa filosofia brasileira o Leonel Franca, que era um padre que escreveu Noções de História da Filosofia que é de 1918. No livro, ele fala da história da filosofia e o finaliza com um apêndice tratando da filosofia no Brasil (CANHADA, 2020, p. 39). Leonel Franca fala basicamente a mesma coisa que o Silvio Romero, reforçando a ideia de que não existe filosofia no Brasil e que o Brasil é um país carente de filosofia[4]. Outro que também continua essa história é o João Cruz Costa na Contribuição da história das ideias no Brasil, que é um texto de 1956. Nessa obra, o João Cruz Costa reitera o que o Leonel Franca e por conseguinte a mesma coisa que o Silvio Romero disse, a saber, de que não existe filosofia no Brasil. João Cruz Costa afirma que nos Estados Unidos até o século XIX se tinha uma avaliação do panorama filosófico semelhante ao nosso, isto é, de que por lá não havia filosofia (COSTA, 1956, p. 13), mas eles teriam ousado e no final do século XIX para começo do século XX criaram uma filosofia nativa que é o pragmatismo americano. Então Cruz Costa diz o seguinte: olha não temos filosofia ainda, mas podemos criar uma filosofia brasileira assim como os norte-americanos criaram uma filosofia para eles, uma filosofia com características tipicamente brasileiras. E ele nos fala sobre a nossa tendência ao utilitarismo e pragmatismo que teríamos supostamente herdado da cultura lusitana e que por isso é que não temos nenhuma vocação para reflexões metafísicas, mas sim para reflexões práticas, principalmente políticas[5].

Outro continuador dessa tradição historiográfica, mas que a continua de uma forma mais bem elaborada e escrita de forma muito sedutora é o Paulo Arantes, que ainda está aqui caminhando entre nós. Ele escreveu o livro “Departamento Francês de Ultramar” que foi lançado em 1994, obra na qual ele trata sobre a formação da cultura filosófica uspiana. Na obra ele diz que quando se criou a USP nos anos 30, entre os fundadores do departamento de filosofia além da ideia de que no Brasil não existia cultura filosófica, se acreditava que nós não conhecíamos a história da filosofia e que quando a missão francesa chegou a São Paulo para criar o departamento de filosofia da USP, eles partiram desse pressuposto de que o brasileiro tem que se familiarizar com a tradição filosófica e que precisávamos ter uma formação propedêutica. O primeiro passo era conhecermos a história da filosofia e conhecendo a história da filosofia aí sim poderíamos partir para a realização de reflexões filosóficas pessoais. O problema, como vai dizer o Paulo Arantes, é que ficamos só na propedêutica (ARANTES, 1994, p. 71-78). Em nenhum momento a ideia dos criadores do Departamento de Filosofia da USP foi formar única e exclusivamente leitores e intérpretes de texto filosófico europeu, mas foi o que acabou acontecendo.

E há outros que também continuam a narrativa criada pelo nordestino Silvio Romero, como o Roland Corbisier, o Álvaro Vieira Pinto (filósofo que foi muito influente sobre o Paulo Freire), o Luís Washington Vita, o Ivan Domingues entre outros. Então, quem se dedicou a fazer história da filosofia no Brasil, apesar das sutis diferenças, acabou continuando a historiografia da desqualificação[6] do Silvio Romero.


Referências Bibliográficas

ARANTES, Paulo. Um departamento francês de ultramar. São Paulo: Paz e Terra, 1994.

BARRETO, Tobias. Obras Completas IX: Questões Vigentes. Edição do Estado de Sergipe, 1926.

CANHADA, Júlio. O Discurso e a história: A filosofia no Brasil no século XIX. São Paulo: Edições Loyola, 2020.

COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olýmpio Editora, 1956.

LOVATTO, Angélica. Iseb: do nacional-desenvolvimentismo à revolução brasileira. Revista Princípios nº 162 jul./out. p. 9 – 40, 2021.

ROMERO, Sílvio. A filosofia no Brasil. Ensaio crítico. In: Obra filosófica. Introdução e seleção de Luís Washington Vita. Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: Edusp, 1969.

SEABRA, Murilo. Engenharia epistêmica: entrevista com Murilo Seabra, Parte 2. SAPIENTIAE: Revista de Ciencias Sociais, Humanas e Engenharias, 2020, vol. 6, núm. 1, p. 109-123.

SEABRA, Murilo. Oftalmopolítica: Um problema com a visão da filosofia. Botafogo: Ape'Ku Editora, 2021.

SCHNEIDER, Alberto Luiz. Machado de Assis e Silvio Romero:  escravismo, “raça” e cientificismo em tempos de campanha abolicionista (década de 1880). Almanack, Guarulhos, n. 18 p. 451-488, Abr. 2018.


Notas

[1] “Romero falava dos inconvenientes da população africana e seus descendentes mestiços” (SCHNEIDER, 2018, p. 458).

[2] Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing (2017).

[3] Segundo Seabra “surgiu a ideia de elaborar um questionário para testar experimentalmente a hipótese do Newton da Costa de que se o nome dele fosse Newton Kostovic, as ideias dele provavelmente teriam sido mais bem recebidas no Brasil” (SEABRA, 2021, p. 146).

[4] “Embora se aproxime de Silvio Romero na avaliação da falta de solidez no encadeamento das ‘ideias’ filosóficas, o autor elege como critério de julgamento a ‘originalidade’ da produção filosófica, ou seja, porque os filósofos brasileiros estariam desprovidos de ‘autonomia’, não teriam sido capazes de constituir-se como cânones a ponto de provocarem adesões ou rupturas diante de suas reflexões” (CANHADA, 2020, p. 45).

[5] “Se considerarmos o sentido das ideias no Brasil – verificaremos que elas constituem como que instrumentos de ação, principalmente de ação social e política. A filosofia, em boa parte, esteve, no Brasil, a serviço dessa ação” (COSTA, 1956, p. 439).

[6] Historiografia da desqualificação consiste em mencionar “o autor para dizer que ele não tem padrão científico e que sua produção intelectual está pautada pelo caráter ‘ideológico’. E ponto-final. Em regra, não se enfrenta uma discussão apurada dos fundamentos de seu pensamento nem se leva em consideração o contexto histórico de suas formulações” (LOVATTO, 2021, p. 13).


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