A Nação dos Eremitas e a Sociedade Hiperconectada: Um Paradoxo Contemporâneo

José Maurício de Lima

Mestre em Filosofia pela UnB

04/02/2025 • Coluna ANPOF

A expressão “nação dos eremitas”, utilizada por Stendhal, descreve uma sociedade onde os indivíduos, embora fisicamente presentes, vivem isolados em suas preocupações, preconceitos e convenções sociais rígidas. No século XIX, o autor francês criticava a alienação da sociedade pós-Revolução Francesa, em que a busca por status e a obediência a normas impostas sufocavam a autenticidade e a liberdade individual. Essa crítica, longe de ser ultrapassada, encontra um paralelo direto com o mundo contemporâneo, no qual a hiperconectividade digital paradoxalmente nos torna mais fragmentados e solitários. A análise desse conceito permite compreender como a tecnologia e as novas formas de sociabilidade reforçam, ao invés de combater, o isolamento.

O conceito de “eremita” remete à figura do indivíduo que se isola do convívio social, geralmente por razões espirituais ou filosóficas. Stendhal emprega essa metáfora para criticar a sociedade francesa de sua época, marcada pela hipocrisia e pela rigidez moral. Suas obras retratam um mundo onde a busca pela ascensão social e a manutenção de aparências resultam em um profundo afastamento emocional entre os indivíduos. Essa alienação é um dos temas centrais de “O Vermelho e o Negro” (1830), onde Julien Sorel, o protagonista, enfrenta um sistema social que valoriza o conformismo em detrimento da autenticidade e do talento. De maneira semelhante, em “A Cartuxa de Parma” (1839), Stendhal expõe uma sociedade onde a liberdade individual é frequentemente sacrificada em nome das convenções políticas e sociais. A “nação dos eremitas” surge, portanto, como uma metáfora para um mundo onde as interações são superficiais e regidas por expectativas externas, em vez de serem motivadas por sentimentos genuínos.

Se, no século XIX, o isolamento social era imposto pela estrutura rígida da sociedade, no século XXI ele assume uma nova forma, moldada pela tecnologia. A hiperconectividade proporcionada pela internet e pelas redes sociais deveria, em tese, aproximar as pessoas, mas muitas vezes tem o efeito contrário, fragmentando as relações e promovendo interações superficiais. Embora estejamos constantemente em contato por meio de mensagens instantâneas, videoconferências e publicações online, essas interações não substituem o vínculo humano real. O resultado é um paradoxo: nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, tão isolados.

Esse novo isolamento social se manifesta de diversas formas. Primeiramente, observa-se uma fragmentação das relações sociais, na qual as interações presenciais são substituídas por trocas digitais, reduzindo a profundidade dos vínculos interpessoais. Além disso, a cultura da aparência, potencializada pelas redes sociais, reforça o desejo de aceitação e a necessidade de projetar uma imagem idealizada, fenômeno que remete à sociedade rigidamente hierárquica descrita por Stendhal. Outro aspecto preocupante é a criação de bolhas informacionais, alimentadas pelos algoritmos das plataformas digitais, que reforçam visões de mundo pré-existentes e dificultam o diálogo entre diferentes perspectivas. Por fim, há um aumento significativo da ansiedade e da solidão, uma vez que a constante comparação social e a busca por validação digital podem gerar insatisfação e insegurança.

A grande questão que une Stendhal ao mundo contemporâneo é a falsa sensação de pertencimento. No século XIX, os indivíduos estavam isolados por códigos sociais rígidos; hoje, estamos isolados por um excesso de conexões digitais que não necessariamente resultam em proximidade emocional. Esse cenário exige uma reflexão sobre como resgatar a autenticidade das relações humanas. Algumas soluções possíveis incluem a valorização dos encontros presenciais, que permitem a construção de vínculos mais profundos, o consumo consciente da tecnologia, para evitar a dependência da validação digital, e a promoção de espaços de diálogo e troca de ideias, que podem reduzir a fragmentação social. Além disso, é essencial resgatar a espontaneidade e a liberdade de expressão, princípios defendidos por Stendhal como essenciais para a realização pessoal.

Dessa forma, a crítica stendhaliana à sociedade francesa do século XIX permanece surpreendentemente atual. A “nação dos eremitas” persiste, agora não mais como um fenômeno causado pela rigidez social, mas como um reflexo da ilusão de conexão proporcionada pela tecnologia. Se antes os indivíduos estavam isolados pelas convenções e pelo formalismo, hoje nos encontramos hiperconectados, mas fragmentados, presos a telas e interações superficiais que podem amplificar a sensação de solidão. O desafio contemporâneo não é apenas buscar novas formas de se conectar, mas garantir que essas conexões sejam genuínas, profundas e significativas. A lição que podemos extrair da obra de Stendhal é que a verdadeira realização humana não se encontra na conformidade ou na validação externa, mas na autenticidade das relações e na liberdade de viver plenamente. Em um mundo de “eremitas conectados”, cabe a cada um de nós encontrar maneiras de romper esse isolamento e recuperar a essência do que significa estar verdadeiramente presente na sociedade.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.