A natureza como mercadoria, a vida em troca
Bruna Santos da Silva
Doutoranda em Filosofia (UFBA).
21/05/2024 • Coluna ANPOF
A relação que deve ser estabelecida entre o ser humano, que vive em uma sociedade capitalista, e a natureza é intrigante pelo seu teor de nocividade. O capitalismo obriga a posse e a dominação da natureza. O ser humano imerso na sociedade capitalista deve possuir, dominar a natureza e, simultaneamente, distanciar-se dela, como quem esquece de onde veio e finge que não sabe para onde vai. Assim, exploramos partes de nós, vendemos nossos pedaços e estamos por aí. Divididos em pedaços, fora do nosso habitat, industrializados. Cada uso inadequado da natureza é um pedaço nosso que perece na terra sem sequer poder adubá-la, pois está repleto de agrotóxico.
Ailton Krenak salienta em Ideias para adiar o fim do mundo que nossa família é a natureza, nossa casa é a natureza, logo, somos parte dela. Entretanto, distantes da ligação fundamental com a natureza, precisamos inventar práticas sustentáveis para lidar com as consequências da distância que evidencia que uma cisão entre os seres humanos que vivem em uma sociedade capitalista e a natureza. Portanto, para alguns seres humanos pode parecer irreal e lúdico conversar com as árvores, rios, rochas, considerá-las parte da família, um ser vivo. Afinal, para eles, a natureza é um objeto, uma mercadoria. Já para os povos indígenas, embora haja pluralidade de crenças e práticas, a relação com a natureza é uma relação vital, a preservação da natureza rege a vida. Para o povo Krenak, o rio doce é um avô, uma serra “tem nome, Takukrak, e personalidade” (Krenak, 2019, p. 18). Para o povo Hopi, a rocha é uma irmã. E, para nós, que habitamos a transgenia neoliberal da cidade, o que é a natureza? Ainda mais, quais as consequências da apropriação capitalista da natureza?
Existem algumas respostas. Contudo, as respostas possíveis para tal pergunta têm relação com a necessidade de perpetuação do sistema capitalista. São respostas que detêm a mercadorização da natureza endossada no sistema capitalista atual como essência. Um sistema originariamente reificador que estabelece uma espécie de dominação da razão fadada à destruição dos seres vivos. A metamorfose da natureza em mercadoria é essencial para o sistema capitalista, a manipulação da natureza gera a manutenção da vida humana e as condições de produção. O capitalismo utiliza a natureza como uma fonte de recursos para a produção de bens sem preocupação suficiente com sua preservação ou capacidade de regeneração, ele reifica a natureza devido à sua lógica de produção expansiva e destrutiva. Quando metamorfoseada em mercadoria, a natureza tem mais valor pelo que pode gerar como produto nos mercados, sua capacidade de suprir necessidades humanas não é relevante. Caso contrário, a maioria dos seres humanos que integram o sistema econômico capitalista estaria, pelo menos, bem nutrida neste exato momento, não em situação de insegurança alimentar ou fome.
O capitalismo cria a necessidade de exploração dos recursos naturais ignorando as consequências, gerando desequilíbrios e negligenciando um ecossistema que se autorregula. A natureza é apropriada como uma serva-produtora submetida às ordens da exploração capitalista. Logo, a reificação acontece por meio da determinação da natureza, a natureza está determinada a ter uma função lucrativa, está condenada a servir e produzir. A natureza não está mais presente como ela é, sim como deve ser em um sistema capitalista. Existe, desse modo, uma preferência em possuir e lucrar por meio da natureza diante da assunção de pertencimento e parentesco, resultando em uma cisão exploratória que parte do ser humano capitalista para a natureza. A reificação da natureza guarda consequências letais já sentidas e refletidas, basta observar o gradual aumento dos desastres naturais que poderiam não acontecer caso tivéssemos estabelecido uma relação diferente com a natureza, evitássemos tratar a natureza como uma mercadoria. Contudo, o que é mercadoria? Marx responde a contento em O capital
A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção (Marx, 2015, p. 157)
Ora, interpretando apenas o excerto acima e não a complexidade da tese marxiana, alguns dirão: se a mercadoria é um “objeto externo, uma coisa que” satisfaz as necessidades humanas como objeto de fruição, isto é, como satisfação as necessidades diretas e indiretas da pessoa, ela não está intrinsecamente ligada ao capitalismo. A mercadoria está diretamente vinculada também a subsistência e antes do capitalismo já nos apropriávamos da natureza para sobreviver. Diremos: correto. Entretanto, não é esse tipo de uso da natureza que é nocivo. A nocividade está na cisão. Há uma cisão que separa as práticas originárias de subsistência e a própria noção de subsistência do ser humano capitalista. A integração com a natureza é eliminada e a servidão da natureza é exaltada. Como consequência, vivemos uma sucessão de tragédias climáticas ocasionadas pela aniquilação da vida e podemos dizer que hoje, em sua fase neoliberal, o capitalismo manifesta todo seu potencial de devastação.
Logo, “não se trata em ceder ao “catastrofismo” constatar que a dinâmica do “crescimento” infinito induzido pela expansão capitalista ameaça destruir os fundamentos naturais da vida humana no planeta” (Lowy, 2014, p. 40), trata-se de compreender que a degradação da natureza está intrinsecamente ligada ao modelo capitalista e à exploração dos recursos naturais em função do crescimento econômico da classe dominante. Esse sistema, ao priorizar o lucro imediato e direcionado a poucos, negligencia os impactos ambientais comprometendo a estabilidade e o equilíbrio do meio ambiente. O colapso da natureza ameaça a biodiversidade, a extinção de espécies, a saúde e a sobrevivência humana. Inevitavelmente, práticas anticapitalistas são necessárias. Precisamos reformular nosso sistema econômico e resgatar nossos vínculos ancestrais com a própria natureza.
Referências
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LOWY, Michael. O que é ecossocialismo? São Paulo: Cortez, 2014.
MARX, Karl. O capital - crítica da economia política 1. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2015.
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