A paixão pela razão: Um obituário de Hans Albert (1921 - 2023)
Wolfgang Theis
Doutorando em Filosofia pela Universidade de Brasília
23/11/2023 • Coluna ANPOF
Hans Albert está morto. Em 24 de outubro de 2023, o filósofo e sociólogo alemão morreu aos 102 anos de idade, após uma vida bastante agitada. Essa foi a morte do penúltimo oponente da disputa do positivismo, que ocorreu em outubro de 1961 na Universidade de Tübingen, na Alemanha. De um lado estavam os representantes da teoria crítica da Escola de Frankfurt, Theodor W. Adorno e Jürgen Habermas, e do outro os representantes do racionalismo crítico, Karl Popper e Hans Albert.
Enquanto Adorno e Popper, em grande parte, não se referiam um ao outro em sua disputa, pois não queriam se referir um ao outro, houve uma verdadeira troca de argumentos entre Habermas e Albert. Essa disputa entre os dois continuou por décadas. Hans Albert, por exemplo, em seu 100º aniversário, disse no Frankfurter Rundschau sobre Adorno e Habermas:
"Eles não entendem nada de lógica. Eles são antilógicos. A teoria deles é perseguida sem conhecimento de lógica, e isso pode ser encontrado em todos os lugares". Especificamente sobre Habermas, ele acrescentou: "Não tenho nenhuma saudade de Habermas. [...] Considero o que Habermas escreveu uma tolice". Palavras fortes para seu (antigo) oponente.
Mas Albert não estava apenas criticando a teoria crítica. Ele criticou as abordagens da justificação final do amigo de Habermas, Karl Otto Apel, a teoria do neokantiano Martin Heidegger e a hermenêutica universal de Hans Georg Gadamer também não ficaram imunes às críticas de Albert. A teoria da justificação final de Apel refutou Albert com o Trilema de Münchhausen. Com isso, ele disse que, em um processo de justificação, chega-se a um beco sem saída. Ou a pessoa se perde em uma regressão infinita (justificação constante da última justificação), ou volta ao ponto de partida da justificação em um círculo lógico (Por que as galinhas põem ovos? Porque elas são galinhas. Por que elas são galinhas? Porque põem ovos), ou se interrompe arbitrariamente a regressão infinita com um dogma (algo que pode ser encontrado em todas as religiões). Sobre Gadamer e Heidegger, Albert disse em seu aniversário de 100 anos: "Gadamer não era um pensador, ele era um tagarela. Acho que a teoria de Heidegger está simplesmente errada. Deve-se questionar as autoridades de forma tão crítica quanto todas as outras posições".
O que Hans Albert quis dizer com sua filosofia? Nada nem ninguém é infalível, todas as verdades podem ser derrubadas e todo o nosso conhecimento não é seguro. As percepções que o homem obtém dos processos do mundo são apenas provisórias e só são válidas até serem falsificadas por novas percepções. No entanto, isso também se aplica à nossa própria filosofia, que também deve ser questionada repetidamente e enfrentar críticas. Somente descobrindo erros e enganos ao vivenciar o mundo e pensar sobre ele é que nos aproximamos do modo de existência real presumido do mundo e, portanto, também da verdade desse mundo. Por exemplo, ele escreve em seu livro Traktat über kritische Vernunft (Tratato sobre razão critica): “Enquanto o racionalismo clássico elevou certas instâncias - a razão ou os sentidos - a autoridades epistemológicas e, assim, procurou torná-las infalíveis e, portanto, imunes à crítica, porque, de outra forma, o objetivo da justificação segura não parecia alcançável, o racionalismo crítico não pode mais conceder infalibilidade a nenhuma instância e, portanto, o direito de dogmatizar certas soluções para problemas. Não existe uma solução para um problema, nem uma autoridade responsável pela solução de certos problemas, que necessariamente teria de ser retirada da crítica desde o início. Pode-se até mesmo presumir que as autoridades para as quais se reivindica essa imunidade à crítica não raramente se distinguem dessa forma porque suas soluções para os problemas teriam pouca chance de resistir às críticas que, de outra forma, seriam possíveis. Quanto mais essa alegação é enfatizada, mais justificada parece ser a suspeita de que por trás dessa alegação está o medo de descobrir erros, ou seja, o medo da verdade" (Albert, 1991, p. 44).
É essa imunidade à crítica por parte das supostas autoridades que sempre irrita Hans Albert. As formas dogmáticas de pensar em sistemas autocráticos e ditatoriais, especialmente aquelas associadas a uma personalidade carismática e seu culto, tentam se fechar para as críticas e apresentar suas ideologias e pontos de vista como os únicos verdadeiros. Críticos e pensadores não são bem-vindos, outras visões do dogma oficial são mal-vistas e os oponentes são perseguidos. No entanto, são justamente a discordância e a crítica que contribuem para o aprimoramento.
Sem essa importante função de controle, os problemas podem ser reconhecidos, mas não resolvidos. Sempre deve ser possível questionar as autoridades e suas verdades. Essa é a pedra angular da ordem democrática e também da convivência humana. Não é necessariamente a autoridade em si que é questionada, mas apenas o exercício dela e a maneira como é exercida, bem como o resultado exatamente desse exercício. Aqueles que ocupam posições de poder têm de suportar isso, porque o poder posicional influencia a vida de muitos outros.
Presumivelmente, Hans Albert é pouco conhecido no Brasil, mas seus oponentes Adorno e Habermas, bem como seu companheiro de armas Karl Popper, são. Mas sua influência também é sentida aqui. Qual pode ser a razão desse desconhecimento? Podemos fazer algumas considerações sobre isso.
Primeiramente, Hans Albert sempre usou uma linguagem simples para expressar seus pensamentos. Acredita-se comumente que apenas a forma mais complicada de expressão possível transmite um bom conteúdo. No entanto, Gottfried Wilhelm Leibniz já havia se pronunciado a favor do uso do vernáculo, porque o que não pode ser expresso por meio de uma linguagem simples também não tem valor em termos de conteúdo.
Outro motivo possível é Hans Albert nunca ter se submetido ao espírito da época. Pelo contrário, ele sempre criticou o espírito da época. Por exemplo, o conservadorismo da década de 1960, as reflexões socialistas da década de 1970 e o pós-modernismo da década de 1980. Isso não o levou para a mídia e, portanto, ele permaneceu bastante desconhecido para um público amplo, já que nenhuma corrente do espírito da época poderia se referir a ele de forma positiva.
A rejeição por papeis autoritários de liderança pode ser considerada outra razão. Hans Albert preferia ficar isolado, em segundo plano, para poder trabalhar e pensar em paz. Os holofotes da controvérsia sobre o positivismo eram desconfortáveis para ele. Seu modo de vida também era orientado para o racionalismo crítico, porque ele preferia aprender com os outros em vez de ensinar os outros.
O seu papel como mediador entre posições extremas também é um dos motivos plausíveis. Hans Albert tinha entre seus amigos tanto o racionalista crítico Karl Popper quanto o relativista radical Paul Feyerabend. Em termos de conteúdo, ele estava mais próximo de Karl Popper, mas suas abordagens teóricas científicas tinham uma abordagem racional pluralista, o que o colocava exatamente entre Feyerabend e Popper. Representantes de posições extremas, no entanto, encontram um eco muito maior na mídia do que os mediadores.
Ao expressar seu posicionamento de que todas as declarações, instituições ou pessoas são dignas de crítica, Hans Albert de certa forma reitera a sua postura incomum. Tais ideias abarcam também as instituições religiosas, já que ele criticou o fundamentalismo religioso em uma época em que ninguém queria saber disso. Para muitos filósofos, a crítica à religião é um campo minado que pode acabar abruptamente com a carreira de uma pessoa. Entretanto, isso não o impediu de trabalhar nesse campo também. Felizmente para ele, já tinha seu cargo permanente na universidade e, portanto, suas críticas à religião não poderiam mais prejudicá-lo. O fato de ele ter permanecido leal à Universidade de Mannheim até sua aposentadoria em 1989 e ter recusado convites para outras universidades mais renomadas certamente contribuiu para o fato de ele não ser tão conhecido pelo público em geral quanto merecia.
Uma vez perguntado sobre qual era a diferença entre ele e Karl Popper, Hans Albert disse: "Eu vivi mais, mas isso não é minha culpa".
Bibliografia e referências
Albert, H. Traktat über rationale Praxis, Tübingen, Mohr Siebeck Verlag, 1978.
Albert, H. Kritik der reinen Erkenntnislehre. Das Erkenntnisproblem in realistischer Perspektive, Tübingen, Mohr Siebeck Verlag, 1987.
Albert, H. Traktat über kritische Vernunft, Tübingen, Mohr Siebeck Verlag, 1991.
Albert, H. Kritik der reinen Hermeneutik. Der Antirealismus und das Problem des Verstehens, Tübingen, Mohr Siebeck Verlag, 1994.
Albert, H. Kritik des transzendentalen Denkens, Tübingen, Mohr Siebeck Verlag, 2003.
Albert, H. Briefwechsel mit Karl Popper, Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 2005.
Albert, H. Josef Ratzingers Rettung des Christentums. Beschränkungen des Vernunftgebrauchs im Dienste des religiösen Glaubens, Aschaffenburg, Alibri Verlag, 2008.
Albert, H. Briefwechsel mit Paul Feyerabend, 2 Bände, Klagenfurt / Wien, Kitab Verlag, 2008/2009.
Albert, H. Kritische Vernunft und rationale Praxis, Tübingen, Mohr Sieback Verlag, 2011.
Albert, H. Das Elend der Theologie. Kritische Auseinandersetzung mit Hans Küng, Aschaffenburg, Alibri Verlag, 2012.
Albert, H. Zur Analyse und Kritik der Religionen, Aschaffenburg, Alibri Verlag, 2017
Giordano Bruno Stiftung Hans Albert, der Jahrhundertdenker, Giordanke Bruno Stiftung / Hans Albert Institut, 2021, disponivel em: https://www.youtube.com/watch?v=blYyk0raIeE (acc. 25.10.2023).
Hesse. M. Hans Albert zum 100. Geburtstag. Unser Wissen bleibt unsicher. Frankfurter Rundschau, 05.02.2021, disponivel em: https://www.fr.de/kultur/literatur/hans-albert-zum-100-geburtstag-unser-wissen-bleibt-unsicher-90193523.html (acc. 25.10.2023).
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