A retórica performática de gênero e sua impossibilidade de abertura a outros discursos ético-políticos

Thailize Brandolt

Doutoranda em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul.

04/10/2022 • Coluna ANPOF

Quando falamos em uma sociedade organizada politicamente tendo como base pressupostos misóginos e patriarcais, também estamos falando de um processo linguístico e retórico performático que atribui aos gêneros diferentes papéis sociais e, consequentemente, prioriza certos discursos e possibilidades de ação dentro de um quadro que separa binariamente o mundo entre nós e eles. Infelizmente, estamos inseridos em uma sociedade que confia a discursos masculinizados uma confiança e credibilidade maior do que aqueles que provêm, ou de alguém que se identifica como mulher, ou de algum outro sujeito que coloca os aspectos relacionados ao feminismo em pauta. O que faz com que a sociedade ainda incorpore tal desconfiança em relação ao discurso feminino? Por que ainda é comum e pouco questionável que para serem ouvidas as mulheres precisam se esforçar muito mais que os homens? O pressuposto que pretendo defender aqui é que a retórica masculina não está presente somente em falas machistas, misóginas ou proferidas por homens, ela também faz parte de uma performance que todos nós, enquanto humanidade produzida através de uma visão política patriarcal, se utiliza da linguagem presente para reforçar estereótipos e separação binária de certos tipos de papéis sociais e políticos. 

Utilizo aqui o termo performance inspirada por Judith Butler que atribui a performance de gênero como um dos grandes problemas identitários relacionados ao feminismo em seu livro Problemas do Gênero: Feminismo e Subversão de Identidade. Butler questiona a tentativa feminista de atribuir uma identidade fixa ao gêneno feminino, mesmo que o termo comporte um plural mulheres nunca será capaz de representar e identificar uma luta contra o patricardo e seus pressupostos ético-políticos. Há de se questionar: por que haver um termo que delimite uma luta que em si está atrelada a alteridade? Como identificar, em meio a tanta pluralidade, diversidade e diferentes composições étnicos-sociais algo que seja capaz de falar e discursar em nome de todos estes pressupostos? É a partir disso que Butler formula a tese de performance de gênero contrapondo a ideia que de um corpo corresponderia apenas a um gênero, nos convidando a pensar no corpo não mais como um dado natural, mas como uma superfície politicamente regulada. Ou seja, o gênero se qualifica como efeito, algo produzido e estimulado pelas instituições, práticas e discursos cujo pontos de partida são múltiplos e diversos, mas que acabam reduzidos a um processo identitário incapaz de ir além da heteronormatividade compulsória

Obviamente a tese de Butler carece e merece um tempo e espaço maiores de compreensão, mas o que me interessa neste momento é este conceito do gênero enquanto performance, em como aquilo que é tido como natural, mas que na verdade é produzido através de atos performáticos impostos pelas instituições sócio-políticas e sua contribuição para a proliferação de discursos que fomentam cada vez a desconfiança em tudo aquilo que corresponde ao gênero feminino. Para tanto, vamos pensar no conceito de doxa que como bem lembra Hannah Arendt, além de opinião, também significa aquilo que confere esplendor e fama. Ou seja, ela está relacionada ao que é público, à vida política, onde todos podem se mostrar e aparecer quem se é através de uma retórica que tem como base uma doxa (opinião) que no ambiente privado nada tem a dizer.  Em A Promessa da Política, Arendt retoma a filosofia de Platão para falar a respeito de uma retórica que tem como base a arte não só de encontrar a verdade, mas também de publicizar os diferentes tipos de existência. Dessa forma, o Sócrates arendtiano pretende despertar nos cidadãos atenienses a capacidade de encontrar dentro de si a própria doxa, que vê a verdade como aquela que se relaciona com a existência múltipla dos diferentes tipos de sujeitos que compõem a polis, fazendo entender com isso que  existam tantos tipos  de  verdade, assim como  diferentes  tipos  de  existências. Segundo Arendt:

Todo homem tem sua doxa, sua própria abertura para o mundo, e Sócrates deve, portanto, começar sempre com perguntas; ele não tem como saber de antemão que tipo de dokei moi, de a-mim-me-parece, o outro possui. Ele precisa se certificar da posição do outro no mundo comum. Mas, assim como ninguém pode saber de antemão a doxa do outro, ninguém pode saber por si mesmo e sem esforços adicionais a verdade inerente à sua própria opinião. (ARENDT, A Promessa da Política, p. 56)

Bom, mas o que esse pensamento arendtiano nos revela sobre a tese aqui apresentada a respeito dos discursos performáticos de gênero? Me parece que tal processo retórico está presente até hoje em nossa sociedade, podemos pensar na possibilidade de que a cada um de nós cabe uma verdade a partir de uma doxa e modo de vida particular. O que se configura perigoso para a construção de certos tipos de conhecimento, mas também nos ajuda a questionar a naturalização de certos discursos que também naturalizam a universalização e formalização do aspecto binário sexo/gênero como uma espécie de verdade naturalizada e não um processo performático que foi sendo produzido ao longo dos anos. Quando temos uma doxa, que também significa aquilo que confere fama, sustentando uma verdade que há uma composto identitário que dá forma aos conceitos de sexo e gênero, também temos uma retórica que se transforma num ato permormático que vai influenciar não só no comportamento  político, mas também na percepção identitária dos sujeitos. Ao contrário do Arendt propõe com o seu Sócrates que ajuda a dar à luz as verdades das diferentes formas de existência, o discurso identitário e as instituições já formuladas por um génese binária, acabam reprimindo a possibilidade de novos discursos para além daqueles que já foram naturalizadas pela lógica masculino/feminino. Se o gênero é uma performance, os discursos proferidos são parte inicial de um processo de normatização da  existência humana colocada em molduras que não são capazes de comportar toda a sua multiplicidade.

Quando um homem fala, ou quando um sujeito masculino profere um discurso dentro do padrão patriarcal, ele está dentro dessa moldura, é algo já conhecido por todos, ou pelas menos pela maioria. A doxa não é mais aquela que existe dentro da particularidade de cada cidadão, como idealizada Sócrates, ela se transforma num conceito de endoxa empobrecida, que retirada apressadamente da definição aristotélica, se torna apenas uma opinião que é aceita por uma maioria já produzida e moldada por uma performance machista e patriarcal.  E nesse sentido nos cabe fazer a pergunta: quem é considerado legítimo para conferir a uma doxa o seu sentido de endoxa atualmente? Que maioria é essa capaz de tornar uma opinião, uma opinião reputada? Me parece que se aplicarmos a essa conceituação de “endoxa” nos discursos de gênero, isso só irá reforçar aquilo que já está dado, a naturalização do binarismo, e com isso acabar conferindo aos discursos masculinos, e aqueles que não fogem dessa moldura, uma maior credibilidade. A endoxa masculina é, nesse sentido, a gênese performática do gênero, que vai normalizando e normatizando certas práticas que configuram a sociedade machista atual. 

Vivemos tempos frenéticos de consumo de informação e o conhecimento também acaba se fragmentando em meio a rotinas cada vez mais conturbadas. Não temos disposição, nem tempo possível, para uma análise e investigação a respeito das múltiplas doxas como propunha o Sócrates arendtiano. Deixamos morrer a diversidade de verdades, como um projeto político que visa deixar morrer também a diversidade de sujeitos. Buscamos por um reconhecimento de um identidade perdida, de algo que foi tirado de nós mulheres ao longo dos anos, mas ainda não conseguimos romper com essa retórica performática de gênero que sempre irá nos colocar em segundo plano, que nunca será capaz de falar por nós, muito menos conferir esplendor e fama à possibilidade de novos discursos que questionem a normatividade hetero/masculinista que estamos inseridas.  


Referências 

ARENDT,  Hannah. A  Promessa  da  Política.  Organização  e  Introdução  de  Jerome  Kohn.  Trad.  Pedro Jorgensen Jr. 7ª ed., Rio de Janeiro: Difel, 2020.

BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.