AFETO: A Resistência do Povo Negro | Especial Novembro Negro

Simone Borges dos Santos

Doutoranda em Filosofia na UFBA

22/11/2024 • Coluna ANPOF

GT Raça, Gênero e Classe

Nesse novembro de 2024 celebramos no Brasil o Dia da Consciência Negra de maneira inédita. É a primeira vez que essa data é feriado em todo território nacional. Curiosamente, escrevo esse texto no referido dia. Não por coincidência, pois não acredito nela, mas, talvez, pela força ancestral que me fez refletir sobre esse dia simbólico e, então, compartilhar percepções e/ou sentimentos que me atravessam quando penso a respeito do povo negro.

Inicialmente, acho importante me identificar. Sou uma mulher, negra, pele retinta, soteropolitana, periférica, meia idade (supondo que, assim como minha avó, viverei até perto dos cem anos), mãe, candomblecista, graduada em Ciências Contábeis e em Filosofia, doutoranda em Filosofia, neste momento em doutorado sanduíche em Paris.

Em relação à grande parte da população negra tive alguns privilégios durante a infância e adolescência, tais como, estudar em escolas particulares, não precisar trabalhar para ajudar nas despesas de casa, morar em residência própria, não me preocupar se teria garantida as três refeições diárias, fui criada e educada por minha mãe e por meu pai. Possivelmente, essa condição assegurada pela família permitiu-me entrar na faculdade no primeiro vestibular prestado, aos 18 anos.

Contudo, todos esses “privilégios” não me blindaram do racismo. Porque, por mais que eu pudesse frequentar os mesmos espaços das minhas e dos meus colegas de classe, eu sempre fui a garota negra que frequentava os espaços de brancos. Ou seja, eu era um não ser ocupando um não lugar. A dessemelhante.

De outro lado, havia a cobrança de painho e de mainha para que eu fosse a melhor em tudo. A que tira as melhores notas. E fui!  Ainda ressoa em meus ouvidos a frase: “Nós já somos pretos, não podemos ser burros”. Entendo o que minha família queria dizer. Na verdade, significava: “A vida é muito difícil para quem tem a pele igual a nossa, será ainda pior se não tivermos, ao menos, educação”. Era um ato de amor. Uma forma de ensinar a me defender.

Nunca foi dúvida o amor que existe em minha família. Sou amada e sempre soube. O amor me fortaleceu, me fortalece. Entendi que meus pais não desejavam me blindar, mas me preparar para uma vida cheia de enfrentamentos. Por isso, atendi às suas expectativas. Nunca me permiti ser menos do que excelente, em minha vida escolar e acadêmica. Tudo isso me custou, custa, saúde mental, emocional e física.

Entretanto, não fosse por esse afeto tão grande, compartilhado entre nós, eu teria sucumbido. Emociono-me ao lembrar do orgulho do meu povo – que não é somente a família biológica, mas, também a família do terreiro, amigos próximos, colegas de faculdade – ao saber que eu viria pra França, em doutorado sanduíche. Todo esse carinho é suporte para eu continuar fazendo aquilo que acredito. Escrevo, aqui, com lágrimas nos olhos. Não poderia ser diferente, afinal sou uma escorpiana filha de Oxum. O elemento água duas vezes. Que me compõe e recompõe da cabeça aos pés. Talvez essa fluidez das águas e a sensibilidade de Oxum me dão a percepção de que não sou só e tenho como missão fortalecer as minhas e os meus, a partir da força dos afetos recebidos.

Por afeto, utilizo os conceitos de Baruch Espinosa. O filósofo holandês, na Parte III do livro Ética, afirma que a potência de agir do Corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida pelas afecções ou modificações do próprio Corpo. A paixão é tudo aquilo que é motivado por uma causa exterior, uma reação. Ou seja, para Espinosa, Afeto é ação, o contrário é paixão. Para Espinosa, tudo o que a mente processa, realiza, está diretamente ligada à ação do corpo. A mente, o quanto pode, esforça-se para imaginar coisas que aumentam ou favorecem a potência de agir do Corpo. O conatus, que é o nosso esforço de preservação na existência, nos impele a buscar pensamentos e ações que aumentem a nossa potência de agir.

Desse modo, os afetos trocados, aumentam nossas potências de agir. É no compartilhamento de afetividades que nós, negros, nos fortalecemos. Apesar de toda dor causada pelo racismo, – com ele todas as consequências ruins que nos atingem – seguimos sendo resistência, porque, segundo Renato Nogueira, o amor usa os outros afetos em favor da vida; organiza, inclusive, o medo de uma maneira mais proativa. Amor não é uma emoção individual, é coletiva. É na coletividade que nos inspiramos e aumentamos nosso conatus.

Observo com muita atenção os movimentos artísticos das periferias. Os vejo como amostras de amor que se constituíram a partir de paixões (raiva, medo, tristeza), então transformados em ações, atos potentes que organizam pessoas em busca de um bem comum. O amor nos direciona à Alegria. Para Espinosa, a Alegria é o afeto que aumenta a nossa potência de agir à medida que a Tristeza age de modo inverso, diminui nosso potencial. Se não revertemos o estado de tristeza, o resultado é a morte.

Não quero, com isso, dizer que ao final de tudo o racismo é benéfico. Em hipótese alguma! Busco explicitar a nossa capacidade de resiliência, de organização e de ressignificação para permanecermos na existência em busca de vida digna. Usamos as artes para demonstrar e expurgar nossas mazelas. Ao mesmo tempo que são ferramentas de denúncia, a música, a dança, a capoeira, os slams, os poemas e poesias, a literatura, a pintura etc., são refrigérios de nossas almas que deixam a vida um pouco mais leve quando nos reconhecemos em nossa.o.s iguais.

Trago o exemplo de Elza Soares. Uma mulher preta, pobre, que sofreu violência doméstica, teve alguns de seus filhos mortos pela fome. Elza Soares transformou sua dor em arte. Ao longo de sua carreira tocou em temas polêmicos em diversas músicas, usou sua voz brilhante para manifestar indignação diante das desigualdades sociais do nosso país. Em uma de suas interpretações ela diz:

A perna treme
Parece vídeo game
É uma poça de sangue no chão
E o nego geme
Eu me pergunto: Onde essa porra vai parar?
Revolução, só Che Guevara de sofá
A carne mais barata do mercado não tá mais de graça
O que não valia nada agora vale uma tonelada
A carne mais barata do mercado não tá mais de graça
Não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada
Prepara o coração que eu vou escurecer
E pode dar piripaque
Do Big ao Tupac
Marielle Franco, Rosa Parks
Destrava a corrente, sai fora da foice
Mogobe Bernard Ramose
Essa aqui Neymar não dança na hora de meter gol
Mas os pretos avançam, Wakanda forever yo!
(Não tá mais de graça, 2019)

As religiões de matrizes africanas nos ensinam que devemos cantar e dançar em todas as situações de nossa existência. Cantamos e dançamos para celebrar a vida, o nascimento, assim como cantamos e dançamos pela comida conquistada e ofertada; pela chegada ou pela partida de alguém. Também cantamos e dançamos nas celebrações fúnebres, para que aquele espírito que não pertence mais ao Àiyé (espaço físico, terreno) retorne em paz ao Òrum (plano espiritual).

Dessa forma, entendo que os afetos amor e alegria, manifestados através da arte, são formas de experimentar ou caminhar em busca de autoestima e dignidade coletivas. Assim como a alquimia de cozinhar, em que o resultado é alimentar corpos e deixá-los mais fortes, a arte é o afeto da alegria, que alimenta nossas almas e nos torna potentes, protagonistas de nossas vidas.


Referências

ESPINOSA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

NOGUEIRA, Renato. Por que amamos? O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor. Rio de Janeiro: Haper Collins City, 2020.

SOARES, Elza. Não tá mais de graça. Rio de janeiro: DeckDisc, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BLttXUp8xyQ. Acesso em 21 nov. 22.