Agamben e “o que é a filosofia?” Ajuda italiana para o feminismo e toda a filosofia social

Prof. Dr. Paulo Ghiraldelli

17/11/2017 • Coluna ANPOF

Se Judith Butler ler o último livro de Agamben, O que é filosofia? (1) ela pode encontrar resposta para as questões que fez no início dos anos noventa, e que acreditou serem impossíveis de responder. 

Na época, levando em conta a literatura feminista já existente, e defendendo a ideia de que a nossa linguagem constrói o gênero, o sexo e, enfim, até mesmo o corpo, não sabia dizer se havia ou não alguma coisa prévia à linguagem, sobre a qual esta atuaria para fazer aquilo que nos aparece feito. Haveria ou não uma “materialidade”, uma espécie de pré-corpo, que iria se transformar, pelos “discursos” (Foucault) ou pela “ressignificação” (Derrida) ou pela “interpelação” (Althusser) no corpo? Apesar de não negar a “materialidade” prévia do corpo (algo que se espetado flui sangue, algo que é machucado etc), ela preferiu assumir que uma tal questão, no limite, não poderia ser de fato respondida.

Na linha de Donald Davidson e Richard Rorty, que eu mesmo trabalhei em meados dos anos noventa, essa questão ganhou uma resposta. Assumia-se que a própria questão era uma espécie de erro. Perguntar por algo que represente o corpo seria não entender o papel da linguagem comum, que é antes o de lidar (cope with) com as coisas e não “representá-las como elas são”, uma vez que o “como elas são” não passaria de uma criação do realismo e um alimento para os céticos (uma tal conclusão estava baseada no fracasso filosófico, mas não do senso comum, da noção da verdade como correspondência). Aliás, Rorty se aproveitou disso para sugerir às feministas que usassem da prerrogativa do pragmatismo americano para colocar na jogada vocabulários capazes de dizer a outros o quanto a perspectiva não opressiva das mulheres é boa para todos, mas que deixassem de querer descrever “como de fato é a mulher”. Em Rorty, desapareceria o sentido de ser perguntar o quanto teria razão a frase de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se”. Seria uma boa frase, se tomada pragmaticamente, sem alentos ontológicos.

A maior parte das feministas nunca entendeu Rorty. Butler concordou com Rorty em várias posições políticas e de filosofia social, mas não conheço algum texto dela na qual levou a sério a sugestão pragmatista para a solução do principal nó metafísico de sua teoria, a da relação entre palavras e coisas.

Penso que seria difícil agradar Butler com essa resposta rortiana. Uma série de outros filósofos também não gostaram dessa solução, ainda que pensando muitas outras coisas, e não apenas o corpo como base nuclear para gênero ou sexo ou desejo – a tríade clássica que os “estudos de gênero” envolvem. Mas eles podem, ao menos a partir de agora, pensar em uma outra nova resposta. Agamben a põe na jogada levando em conta uma brilhante releitura da Carta VII de Platão.

Nessa carta, na chamada “digressão filosófica”, Platão diz que o círculo se apresenta sob cinco aspectos/elementos. O primeiro é o nome: “círculo”, o elemento círculo dito. O segundo é a definição de círculo, a exposição racional, o discurso sobre o que é o círculo e, portanto, o enunciado que utiliza da “palavra” círculo para alimentar a geometria. O terceiro é a imagem do círculo, feita em arame, desenho etc. O quarto elemento seria o conhecimento do círculo, ou seja, a reunião dos três anteriores, a possibilidade de fundar uma ciência a respeito na qual o círculo está, ou mesmo o conhecimento comum do círculo. O quinto elemento, este sim, o “circulo em si”, seria a Ideia. Esta, então, não seria uma “coisa” material, nem algo exclusivamente linguístico no sentido semântico, mas a “lei de dizibilidade”, que se faz presente na nomeação, quando surge o “círculo” não com propriedades semânticas, mas somente com propriedades semióticas. A ideia viveria nesse momento. Essa dizibilidade está em cada um dos elementos, não se reduzindo a nenhum, e possibilitando todos. A Ideia não seria o segundo elemento, a sua definição, o universal. Esta teria sido a interpretação (errada) de Aristóteles, e que comandou toda a temática da filosofia medieval.

Assim, a Ideia platônica nada seria senão um necessário pressuposto, próprio para a dizer e para o saber. Ela nos daria a possibilidade de perceber que a linguagem tem uma sombra, e no seu desenvolvimento puro, no espaço entre o que se quer dizer com a voz que despeja semiótica e a voz que despeja semântica, há o mundo ontológico – o campo das Ideias, ou a Ideia. A linguagem pressupõe a Ideia que, enfim, a possibilita; ela o campo da khora, da ontologia como esta aparece na cosmologia do Timeu, como o que não é nem sensível e nem inteligível, mas fruto de um pensamento “bastardo”, como que num sonho. Esse pressuposto, a Ideia, regra o dizer enquanto dizer com significado e que revela conhecimento. Sem essa sombra que a linguagem carrega nela mesma, sem a dizibilidade, sem esse pressuposto de conteúdo, a linguagem giraria no vazio.

Desse modo, para Agamben, a linguagem tem uma fraqueza ontológica: ela não se mostra, e isso exatamente para poder mostrar as coisas. A linguagem não se expressa, ela não põe as coisas, e fala das coisas, pois ela já é o nomear na sua integração com a definição (logos) e tudo o mais. Se o “círculo” aparecesse não apontando um referente, o círculo em si que é pressuposto na própria linguagem, a linguagem se sobreporia ao que é nomeado, e não deixaria o nomeado emergir ou, como diz Platão, “nascer”. Se trocarmos a palavra "círculo" por "corpo", damos todas as respostas para Butler e tantos outros filósofos.

Podemos voltar com essa tese de Agamben para o corpo. Entendemos então, finalmente, a questão filosófica com a qual Butler se envolveu, e tantos outros: o que garante o corpo é a “ideia” que recebe o signo “corpo”, que significa corpo, mas não nos termos do significado enquanto semântica, mas nos termos do sistema de signo, a semiótica. Esse lugar, esse espaço "maternal", essa khora, possibilita a ideia de corpo ser o nascimento do “corpo” e ao mesmo tempo a inteligibilidade do corpo que será nuclear para gênero, sexo e desejo.

O feminismo e toda a filosofia social, agora, devem uma para Agamben! Afinal, filosofia, para ele, é justamente isto: a pesquisa do Ocidente sobre a lei da dizibilidade. Não creio que isso mude muito as conclusões sociológicas e de filosofia social de Butler, mas a filosofia, como diz Wittgenstein, é realmente a arte de deixar tudo como está. Se levarmos em conta a filosofia no seu sentido nuclear, Wittgenstein está certo.

Voltando à Carta VII. A ideia não é alguma coisa do campo do expressável, mas algo do campo que permite a expressabilidade fazendo a voz ser voz humana, ou seja, a exposição de fonemas que podem ser palavras e discursos. A Ideia, o “em si” platônico é o que pode garantir a dizibilidade. Desse modo, a filosofia não se escreve, pois a ideia só surge na conversação da dialética, não é definível. Por isso Platão apenas relatou, contou e inventou diálogos, ou seja, a conversa sincera de outros que tentavam fazer, nos enunciados, fazer "nascer" as ideias. A dialética acontece entre filósofos, mas dela nada se escreve uma vez que ela é um acontecimento vivo. E também por isso, o tirano de Siracusa, que meio que autodidaticamente, após ouvir e ler Platão, escreveu um livro de filosofia, não havia entendido o que é filosofia. A Carta VII é, portanto, uma alerta a todos que acreditaram que o tirano e o autodidata podem fazer filosofia. Não podem. E não por um defeito deles somente, mas por um problema de impedimento intrínseco da própria filosofia. Um problema que é seu núcleo, a questão da relação das palavras e as coisas.

 

(1) Publicação italiana em 2016. Publicação atual, aqui utilizada: What is philosophy? USA: Stanford University Press, 2018.

ANPOF 2017/2018