Associação de ideias, fake news e a filosofia como prevenção do problema

Kayk Oliveira Santos

Doutorando em Filosofia na Universidade Federal da Bahia (PPGFIL - FAPESB)

21/06/2024 • Coluna ANPOF

Neste ensaio[1], proponho examinar as fake news, que são notícias construídas de maneira deliberadamente falsas, com o objetivo de causar impactos específicos (McIntyre, 2018, pgs. 105 – 109), como uma manifestação contemporânea da associação de ideias, fenômeno em que ideias que não têm relação na realidade são vinculadas na mente, seja por acaso ou por hábito, podendo levar a equívocos e desvios no pensamento (Locke, 2012, II, pgs. 423 e 425; Condillac, 1951, p.61). Além disso, pretendo explorar como a filosofia pode contribuir para prevenção dos problemas gerados pela disseminação de informações intencionalmente falsas. Segundo Locke e Condillac, dados os riscos das más associações para o pensamento crítico, para nossas ações e construção do conhecimento humano, seria indispensável um cuidado de natureza filosófica e pedagógica como forma de prevenir e mitigar as adversidades engendradas pelas fake news. 

É amplamente reconhecido que a rápida disseminação de informações deliberadamente falsas na internet, impulsionada por aplicativos de mensagens instantâneas e tráfego pago, tornaram as fake news um problema que requer respostas em várias esferas da sociedade. Do ponto de vista filosófico, sugiro uma perspectiva na qual os conceitos de associação de ideias de Locke e de ligação entre ideias de Condillac permitem considerar uma abordagem para enfrentar os desafios apresentados pelas fake news nos dias de hoje.

No seu Ensaio sobre o entendimento humano (1689), J. Locke, ao investigar a origem, certeza e extensão dos conhecimentos humanos, dedica atenção ao fenômeno da associação de ideias. A associação é caracterizada pela junção equivocada de ideias independentes na mente sem qualquer relação entre si. Originadas tanto de forma voluntária quanto ao acaso, essas associações podem contribuir para distorcer o raciocínio, influenciando nossas paixões e ações. Do ponto de vista do filósofo inglês, são as associações que fundamentam preconceitos, superstições, fobias, devaneios e divagações. Elas podem obscurecer a compreensão, dificultando a distinção entre o verdadeiro e o falso que é erroneamente aceito como verdadeiro.

Além dessa descrição do fenômeno, Locke alerta no Da conduta do entendimento (1697), sobre os riscos suplementares da associação enquanto instrumento de domínio dos homens[2]. Nesse contexto, as associações podem ser exploradas por autoridades e seitas, podendo servir como instrumento para doutrinação e alienação da capacidade de pensar. Com efeito, elas podem alimentar a introjeção de crenças sem questionamento racional, comprometendo o pensamento crítico, restringindo a racionalidade e, no limite, jogar contra a autonomia do indivíduo. Depois de diagnosticar o problema, resolver os desafios resultantes das associações implicaria: i) instruir os educadores sobre a necessidade de prevenir associações inadequadas de ideias nas mentes dos jovens; ii) orientar os jovens a não permitirem que ideias se unam em seu entendimento de maneira contrária à natureza e à correspondência das próprias ideias.

Uma vez estabelecido o conceito de associação de ideias, defendo que as fake news parecem ser uma expressão contemporânea desse fenômeno. Ora, elas são deliberadamente construídas a partir de ideias sem relação entre si na realidade e se aproveitam da nossa capacidade de associar ideias e formar crenças, sem verificar a coerência ou veracidade das informações. As fake news, informações falsas criadas e difundidas em larga escala através da internet com propósitos específicos, em especial, políticos, representam uma fonte perigosa de propagação de más associações, contribuindo para o desvio do raciocínio e ações de pessoas e grupos. As consequências práticas das fake news no tecido social podem ser observadas nos campos filosófico, político, jurídico, educacional e na saúde pública.

Na saúde pública, observa-se uma queda consistente nas taxas de vacinação em todas as faixas etárias, em especial na infância[3], juntamente com o reaparecimento de doenças previamente controladas com consequências epidemiológicas e financeiras para o sistema único de saúde[4]. No âmbito jurídico, se nota a hesitação de algumas das grandes empresas de tecnologia em cooperar com o judiciário na consolidação de mecanismos para conter a disseminação das fake news[5]; mais recentemente, outro fato: o parlamento brasileiro decidiu manter o veto a criminalização dos responsáveis pela propagação de fake news[6]. Frente a esse panorama, surge a seguinte reflexão: de que forma a filosofia pode atuar no combate às fake news?

Para abordar essa questão, desejo apresentar o conceito de ligação de ideias proposto por Condillac. O iluminista francês segue o raciocínio de Locke sobre a associação de ideias como uma fonte de erros e desvios no pensamento. Entretanto, Condillac enfatiza explicitamente a necessidade de avançarmos além do diagnóstico. Para ele, a filosofia deve investigar as origens do problema e, consequentemente, propor uma solução que evite a formação de associações de ideias sem relação entre si, as quais prejudicam o desenvolvimento do pensamento racional. Dentro desse cenário, ele propõe diferenciar o conceito de associação de ideias do conceito de ligação de ideias. Enquanto a associação pode ser vista como uma fonte de equívocos, a ligação entre ideias funciona de maneira contrária, sendo uma fonte de aquisição de conhecimento (CONDILLAC, 1951, p. 61).

A associação refere-se à conexão entre ideias que não possuem uma relação real entre si, estabelecendo-se na mente sem um discernimento adequado, o que pode prejudicar o pensamento crítico e o desenvolvimento do raciocínio em vista da veracidade[7]. Nesse contexto, associar ideias é distinto de ligá-las: ligar ideias envolve análise e prudência, elementos que fundamentam a capacidade de pensar - “ligamos as ideias quando nós lhes colocamos em uma ordem que faz sentir as relações que existem entre elas” (CONDILLAC, 1951, p. 61). Ligar ideias implica possuir habilidade para analisar e ordenar de forma coerente os conteúdos do pensamento, condição indispensável para promover o cuidado de si e avanços na construção do conhecimento humano.

A abordagem empirista de Condillac estabelece o conceito de ligação de ideias, fundamental para compreendermos como a filosofia pode enfrentar as fake news que promovem más associações. Nesse contexto, é fundamental ressaltar que a habilidade de ligar ideias requer, acima de tudo, uma compreensão do funcionamento de nossas faculdades mentais tanto por parte dos alunos quanto dos professores – enfrentando, assim, um desafio tanto filosófico quanto pedagógico. De maneira mais específica, a filosofia condillaciana reconhece a necessidade de uma metodologia pedagógica que possa enfrentar os desafios impostos pelas fake news, enquanto estabelece os alicerces para uma pedagogia que promova o discernimento crítico. Uma mente educada e crítica deve ser capaz de analisar com prudência e cuidado o conteúdo do pensamento, ligando ideias de maneira coerente em busca do conhecimento, prevenindo que as fake news ganhem espaço no âmbito mental e se consolidem enquanto matéria-prima do pensamento.


Referências bibliográficas

CONDILLAC. Dictionnaire des synonymes. In : Oeuvres philosophiques de Condillac. Paris: Presses Universitaires, (1951). v. III.

LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. Tradução de Pedro Paulo Garrido Pimenta, São Paulo, Editora Martins Fontes, (2012), vol. I e II.

____________ The Conduct of the Understanding. Peter H. Nidditch (Ed.). Oxford University Press. (1999)

MCINTYRE, L. Post-truth. Cambridge: MIT Press. (2018)


Notas

[1] Este ensaio é dedicado ao meu amigo e filósofo baiano, natural de Rio do Pires-Ba, Juliomar Marques Silva. Agradeço pela valiosa troca de ideias que contribuíram para elaboração desse texto.

[2] “Existem imagens sagradas nos templos, e vemos que influência sempre tiveram sobre grande parte da humanidade. Mas na verdade, os poderes invisíveis que constantemente governam os homens são as ideias e imagens em suas mentes, e eles nunca hesitam em se submeter a essas” (LOCKE, 1999, p.1).

[3] Os dados divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostram que a taxa de vacinação infantil no Brasil vem sofrendo uma queda brusca: a taxa caiu de 93,1% para 71,49%. Fonte: https://portal.fiocruz.br/noticia/vacinacao-infantil-sofre-queda-brusca-no-brasil#:~:text=Compartilhar%3A,%25%20para%2071%2C49%25.

[4] https://www.ufsm.br/midias/arco/volta-de-doencas-controladas

[5] https://www1.folha.uol.com.br/blogs/brasilia-hoje/2024/06/stf-faz-acordo-com-big-techs-contra-fake-news-e-x-de-musk-fica-de-fora.shtml

[6] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/05/28/veto-de-bolsonaro-que-barrou-criminalizacao-de-fake-news-e-mantido

[7] O conceito de veracidade tem a ver com o “caráter de quem não pode enganar e nem se enganar” (CONDILLAC, 1951, p. 554). Dado o contexto, o pensamento crítico não poderia favorecer que a pessoa se engajasse em fomentar más associações ou ser uma vítima dessas.


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