Autoria e A Política da Metafísica

Felipe G. A. Moreira

Doutor em Filosofia (University of Miami) e Pesquisador de pós-doutorado em Filosofia (Unesp)

12/12/2022 • Coluna ANPOF

Recentemente, diversos filósofos brasileiros participaram da XXXIII Jornada de Filosofia e Teoria das Ciência Humanas. Filosofia Autoral Brasileira foi o tema dessa jornada. Isso é uma indicação de que começa a ser estabelecida entre alguns de nós, filósofos brasileiros, uma convicção: a de que precisamos urgentemente pensar acerca de como os três termos italicizados e capitalizados acima devem ser usados. Não tenho muito a dizer sobre como “filosofia” deve ser usado. Assumo simplesmente que esse termo se refere a diversos textos. Feito: A Política da Metafísica — The Politics of Metaphysics, no original, e APdM, daqui adiante — escrita por aquele que vos fala e que acaba de ser publicada pela Palgrave Macmillan. Também não tenho muito a dizer sobre como “brasileiro” deve ser aplicado. Assumo simplesmente que o termo se aplica a mim e a vários outros que compartilham da nomeada convicção. Eu penso num José Crisóstomo de Souza. Eu penso num Ivan Domingues. Eu penso num Paulo Margutti etc. O que eu, no entanto, ouso fazer é propor um uso técnico do predicado “autoral”. Isso sob três bases. 

Para começo de conversa, a base que esse uso é relevantemente restrito no sentido que ele diferencia os trabalhos aos quais o predicado “autoral” se aplica daqueles que não assim o fazem e, logo, podem merecer a aferição de outro predicado: ser  “sutilmente” filosoficamente colonizado. Mais: a base que o uso é exemplificado por ao menos um trabalho filosófico; a própria APdM. Por fim, a base que o uso do predicado “autoral” em jogo é preciso ao estabelecer uma condição para a aplicação desse predicado a certos trabalhos: a saber, presença da maioria ou da totalidade de 13 propriedades, P-1 a P-13.  

P-1 é motivação conflitual; aquela de explicitamente contradizer o que foi defendido ou pressuposto por uma comunidade filosófica e/ou acrescentar algo a ela, feito uma alegação ou uma prática que tal comunidade há de considerar. A prática de trazer a seguinte questão, como APdM faz, exemplifica essa motivação: Como reagir ao fato que, desde tempos imemoriais, disputas associadas à metafísica (daqui adiante, disputas) têm se dado? Isso ocorre porque nem os assim chamados “filósofos analíticos” e nem os assim chamados “filósofos continentais” partem de modo explícito dessa questão. 

P-2 é articulação consideravelmente precisa de ao menos uma disputa. APdM ilustra essa propriedade ao se lançar a nomeada questão e trazer variados exemplos das disputas debatidas no livro. Tipo: as disputas tratadas por filósofos direcionados por Deus, feito Santo Anselmo, sobre se o mal existe e sobre a sua relação com o Deus cristão. Tipo: as disputas acerca da existência da coisa-em-si e da sua relação com aquilo que as condiciona articuladas por Immanuel Kant e por outros por ele de modo mais ou menos explícito influenciados como Angela Davis, Cornel West, Michel Foucault, Judith Butler, Gayle Rubin etc. Tipo ainda: as disputas, focadas por filósofos direcionados pelo físico como Daniel Dennett e Thomas Nagel, acerca da existência da consciência fenomenal e de sua relação com entidades físicas, e.g., estados cerebrais ou partículas.

P-3 é articulação consideravelmente precisa de ao menos uma tese. Essa propriedade também é uma de APdM. Afinal, esse livro articula cinco teses consideravelmente precisas. A Tese 1 é que disputas são micro-guerras; conflitos micropolíticos que implicitamente possuem três características que podem ser explicitamente encontradas em conflitos macropolíticos, e.g., o sobre se a Rússia deveria ter feito uma operação militar na Ucrânia. Essas características são as de: ter uma importância social significativa; envolver oponentes que podem se valer de alguma forma de violência e depender de fatores normativos. A Tese 2 é que disputas podem ser abordadas à moda direitista ou esquerdista. A primeira expressa e a segunda evita a violência “sutil”; seja essa a propriamente dogmática de se sugerir que o outro carece de logos ou a violência “sutil” pseudo não-dogmática de se agir como se o outro não existisse. Por um outro de x, entendo uma pessoa que tem uma visão diferente e uma sensibilidade radicalmente distinta da de x em relação a uma disputa. Por exemplo, um outro de x desafia o logos de x ao rejeitar, ignorar, violar ou interpretar diferentemente os pressupostos ou os critérios de x para lidar com uma disputa. A Tese 3 é que os fundamentos para se aceitar uma abordagem a uma disputa são inevitavelmente questionáveis. Afinal, esses fundamentos são pontos de partidas problemáticos que podem ser racionalmente rejeitados. Mais: eles são comparáveis aos requeridos para se justificar visões acerca de conflitos macropolíticos. A Tese 4 é que, como conflitos macropolíticos, disputas têm uma importância ou grandeza incomensurável. A Tese 5 é que as abordagens de direita até bem podem ser menos atraentes do que a esquerdista defendida ao longo de APdM, e.g., para aqueles que não se autorizam a expressar as mencionadas violências “sutis”.

P-4 e P-5 são: dificultação da objeção que a tese defendida é trivial; e dificultação da objeção que a tese defendida é falsa, respectivamente. APdM igualmente possui essas duas propriedades. Uma indicação disso é dada pelo próprio plano do livro, onde após uma introdução na qual a abordagem conflitual do livro é distinguida da cética e da dogmática, segue-se uma primeira parte que trata em detalhe das abordagens direitistas e uma segunda parte que articula uma abordagem esquerdista inédita. 

P-6 é articulação de ao menos uma tese nova. Como as Teses 1 a 5 são novas, elas evidenciam que P-6 é outra propriedade de APdM.

O mesmo é o caso de P-7: uso não-excessivo de citações. Afinal, APdM se vale de citações apenas com o intuito de corroborar suas interpretações de variados autores.

P-8 é adoção de uma nova terminologia. Considere algumas das próprias expressões usadas aqui. Feito: micro-guerras; violência “sutil”; abordagem direitista; abordagem esquerdista etc. Essas expressões explicitam que P-8 é outra propriedade de APdM.

O mesmo pode ser dito acerca de P-9: reconhecimento da existência dos outros em relação à tradição ao qual o trabalho se alinha. Isso se dá porque ao longo de APdM variados outros uns dos outros, como Friedrich Nietzsche e Rudolf Carnap, são abordados de modo que a própria qualificação do livro como “analítico” ou “continental” é dificultada. 

P-10 é articulação de uma leitura própria de autoridades filosóficas. APdM faz isso diversas vezes. Primeiramente, ao revisitar o ceticismo pirrônico e dialogar com autores como Oswaldo Porchat e Otávio Bueno. Mais: ao interpretar que ao implicitamente articularem abordagens de direita, diversos filósofos ocidentais tradicionais, como Anselmo e Kant, expressam a violência “sutil” propriamente dogmática. Mais ainda: ao propor uma leitura segundo a qual filósofos anglo-americanos, como Willard van Orman Quine, Saul Kripke e Kit Fine, também desenvolvem abordagens de direita, mas expressam outro tipo de violência “sutil”: a pseudo não-dogmática. Por fim, ao desenvolver uma abordagem de esquerda por meio de releituras, sobretudo, de Nietzsche e Carnap, mas também de Gilles Deleuze. 

P-11 é consciência que pressupor a leitura de autores canônicos (e.g., Deleuze) acerca de outros autores canônicos (e.g., Baruch Spinoza) é problemático. Evidência que APdM mostra essa consciência é provida pelo fato que ao propor as leituras mencionadas no último parágrafo, esse livro não se autoriza a repetir nenhuma leitura canônica.

P-12 é contemporaneidade. Essa, pressuponho, é a propriedade de não se perder de vista o contexto histórico onde o trabalho é articulado. APdM, espero, também tem essa propriedade no que esse livro procura trazer à tona uma perspectiva filosófica pertinente ao nosso século: o XXI. Afinal, não parecem mais pertinentes hoje, as abordagens direitistas ou mesmo aquelas que há algum tempo eram “jovens” como as de Nietzsche, Carnap ou Deleuze. “Tudo isso já ficou para trás”, para colocar nos termos da conhecida música popular brasileira. Isso porque “no presente, a mente, o corpo é diferente e o passado é uma roupa que não serve [...] mais”. Ao menos, não para um personagem conceitual que remete a figuras como Jesus; esse personagem que fala ao longo de APdM, fala de modo mais poético no meu livro de poemas, FGAM, e igualmente fala aqui. FGAM é seu nome. “Precisamos todos rejuvenescer”. Também é assim que FGAM fala.

E, para “rejuvenescer”, é preciso também articular trabalhos que possuam P-13. Essa é a propriedade de ser cosmopolita ou de ao menos expressar um provincialismo justificado. APdM, igualmente espero, também é cosmopolita. Isso porque ao ser escrito em inglês, esse livro procura se direcionar ao mundo todo; não só o dos filósofos brasileiros ou dos nomeados autores de toda sorte de tradição, mas também o de vários outros outros tão diferentes entre si quanto Gandhi o é de Che Guevara. 

A Política da Metafísica é, em suma, A Boa Nova. Eu a anuncio a toda criatura, sobretudo, àquelas que porventura possam se interessar por um texto caracterizado por P-1 a P-13.

 

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