Avaliação da aprendizagem de Filosofia na Educação Básica e o dilema subjetividade/objetividade
Marinês Barbosa de Oliveira
Professora (CEFET/MG) e Doutoranda do PPGFil (UFABC)
15/10/2021 • Coluna ANPOF
As questões que envolvem a avaliação da aprendizagem escolar perpassam a discussão sobre a prática pedagógica em todas as áreas do conhecimento. As perguntas sobre instrumentos, modelos e momentos ideais para avaliar os estudantes refletem diferentes concepções sobre o processo de ensino e aprendizagem, trazendo mais dúvidas do que certezas para a maioria dos professores. No que se refere à avaliação das aprendizagens de Filosofia, as dificuldades em torno dos processos avaliativos evidenciam os desafios ainda a serem vencidos por aqueles que se dedicam a esse campo, seja no efetivo exercício nas salas de aula, seja no desenvolvimento de pesquisas e produção de conhecimentos na área.
Com efeito, muitos professores de Filosofia da Educação Básica, preocupados em garantir a objetividade de suas avaliações, optam por utilizarem instrumentos avaliativos como testes com questões de múltipla escolha ou questionários com pergunta direcionadas. Ora, tal posicionamento demonstra uma concepção tradicional da educação, a partir da qual a aprendizagem dos conteúdos de Filosofia é reduzida à capacidade de memorização de informações sobre fatos, teorias e conceitos. Aprender filosofia nessa perspectiva significa tão somente acumular informaçãoes sobre a história da Filosofia, ou sobre o que os diferentes filósofos disseram sobre determinado tema ou problema.
A outra posição, bastante comum nesse nível, defende que não é necessário – nem sequer possível – avaliar objetivamente a aprendizagem em Filosofia. Nessa perspectiva, são priorizados instrumentos avaliativos como dissertações, debates, juris-simulados. As avaliações são pautadas num posicionamento pessoal do aluno frente aos temas e problemas discutidos nas aulas. Essa posição parte na premissa de que a Filosofia, diferentemente de outras disciplinas escolares, possui um caráter eminentemente subjetivo, não apresentando conteúdos específicos passíveis de serem demonstrados pelos alunos e avaliados pelo professor.
Muitos professores de Filosofia parecem assumir e legitimar essas posturas antagônicas. No entanto, essa polarização demonstra um mau entendimento do que seja subjetividade e objetividade em contextos didáticos avaliativos e a falta de conhecimento acerca da especificidade da Filosofia enquanto componente curricular, com conteúdos e competências próprias.
Ora, é importante considerar que a diferença entre uma abordagem objetiva e uma abordagem subjetiva está no fato de que, na primeira, predomina aquilo que é observado; e na segunda, as impressões do observador sobre o observado (JÚNIOR, 2005). É preciso ressaltar, no entanto, que assim como não há subjetividade plena, também não há objetividade plena, uma vez que as palavras, os signos e seus significados são patrimônio de uma coletividade cultural, não de um sujeito. Se por um lado, nossos posicionamentos e escolhas dependem de um repertório que seja fruto de uma coletividade, por outro, fazemos escolhas individuais, mesmo que a partir do repertório coletivo. Ora, a escolha de um instrumento avaliativo está diretamente ligada ao modo como o professor compreende sua disciplina e, de modo mais abrangente, à maneira como concebe o próprio sentido da educação institucionalizada. Nesse sentido, as escolhas do professor por este ou aquele instrumento avaliativo estão repletas de subjetividade e interferem diretamente nos resultados que serão obtidos através deles. Nenhum instrumento avaliativo é totalmente subjetivo ou objetivo. Isso ocorre porque a avaliação que se rege por parâmetros subjetivos, no sentido simplista de que tudo depende das idiossincrasias do aluno que é avaliado ou das preferências e opiniões pessoais, constitui-se em uma farsa sem valor educativo ou formativo (MURCHO, 2009).
Um outro aspecto que gostaríamos de destacar é a prática bastante comum de escolher os instrumentos de avaliação antes da definição do que será avaliado. Ora, não se pode perder de vista que a avaliação é um processo sistemático que visa determinar em que medida os objetivos educacionais foram ou não foram atingidos. Em outras palavras, para que o professor possa ter clareza sobre como avaliar, ele precisa ter clareza sobre o que deverá ser avaliado. É absolutamente imprescindível, portanto, o estabelecimento de descritores avaliativos, ou seja, de critérios bem definidos que determinem o que se pretende avaliar em cada etapa conteúdo. O critério é a síntese do conteúdo e está vinculado à expectativa de aprendizagem, definindo de forma clara os propósitos e a dimensão do que se pretende avaliar (LUCKESI, 1999).
Com efeito, é o trabalho com determinado conteúdo e a clareza em relação às expectativas de aprendizagem que devem orientar quais instrumentos avaliativos serão mais apropriados. Isto significa que não faz sentido começar por escolher se os alunos farão um trabalho individual ou em grupo, se apresentarão uma exposição oral ou resolverão um teste escrito, sem antes saber o que será avaliado. Portanto, o caráter objetivo ou subjetivo de uma avaliação não está ligado simplesmente ao instrumento utilizado, mas sim, às intenções pedagógicas que orientam a escolha, elaboração e utilização desses instrumentos. Uma vez que critérios pessoais são aplicados em detrimento de critérios relativos à expectativa de aprendizagem, o professor se vê diante do seguinte dilema: ou não tem como justificar a avaliação feita, ou, ao justificá-la, tem que reconhecer e aceitar a possibilidade de que sua justificativa venha a ser questionada por qualquer um que “pense de outro modo”. Em qualquer um dos casos, o resultado é pedagogicamente inócuo.
Mas, afinal o que cabe ao professor de Filosofia avaliar?
Cabe a ele avaliar se seus alunos dominam ou não aquelas competências e aqueles conteúdos que dão corpo e identidade à sua disciplina e que, por isso mesmo, a distinguem de qualquer outra área do conhecimento. Cabe, portanto, ao professor de Filosofia avaliar a aprendizagem dos conteúdos filosóficos e das competências filosóficas.
Num sentido amplo, conteúdos são conhecimentos ou formas culturais considerados essenciais num contexto de educação escolar e que devem ser assimilados por estudantes, a fim de alcançarem seu desenvolvimento e socialização. São os conhecimentos sistematizados, selecionados das bases das ciências e dos modos de ação acumulados pela experiência social e organizados para serem ensinados na escola. Os conteúdos não se limitam a fatos ou informações, são também habilidades e hábitos vinculados aos conhecimentos, incluindo métodos e procedimentos mentais, além de atitudes e posturas que envolvem os modos de agir, sentir e compreender o mundo.
A disciplina Filosofia possui conteúdos específicos a serem ensinados pelo professor e aprendidos pelos alunos. Tais conteúdos possuem uma estrutura tridimensional, constituída por uma dimensão conceitual-formal, uma dimensão histórica e uma dimensão procedimental. De acordo com Almeida e Costa (2003), esses conteúdos são expressos por problemas, teorias e argumentos. Os problemas filosóficos são um conjunto de interrogações cuja resposta não é dada pelo senso comum ou por outros saberes. As tentativas de respostas sistematizadas a essas indagações constituem as teorias filosóficas. Os argumentos filosóficos constituem o meio de construção e apresentação dos problemas e teorias filosóficos. A ideia de argumentação aqui apresentada se opõe radicalmente à retórica que limita a adesão a aspectos subjetivos, parciais e emocionais, responsáveis por discussões pseudo filosóficas.
Dessa forma é possível verificar através de diferentes instrumentos avaliativos se os estudantes sabem identificar, formular, comparar problemas filosóficos, se são capazes de identificar, comparar, interpretar, opor e relacionar teorias filosóficas e se conseguem formular, analisar, comparar e avaliar argumentos filosóficos. As competências críticas, reflexivas e investigativas dos alunos são nesse momento requeridas, incentivadas e desenvolvidas, quer como capacidade de compreensão e de análise dos problemas, teorias e argumentos clássicos em filosofia, quer como aptidão para empreender criativamente na fundamentação de posições pessoais sobre os problemas e as soluções tradicionalmente disponíveis (ALMEIDA e COSTA, 2003).
Acreditamos que para a elaboração de critérios justos, rigorosos e adequados para avaliar as aprendizagens em filosofia, faz-se necessário que o professor saiba diferenciar conteúdos filosóficos de não-filosóficos e identificar competências filosóficas de competências não-filosóficas. São estritamente tais conteúdos que deverão configurar-se em objeto de avaliação, uma vez que configuram a especificidade da Filosofia escolar e justificam sua inclusão nos currículos.
Na perspectiva aqui apresentada, avaliar um estudante em Filosofia é uma tarefa tão objetiva ou subjetiva quanto avaliar um estudante de Matemática, História, Física ou de qualquer outra disciplina escolar. É uma questão de reconhecer, identificar e escolher conteúdos e competências e de saber como elaborar descritores avaliativos. Isso não é simples. Compreendemos que essa concepção do que deve ser levado em conta na avaliação da aprendizagem de Filosofia afasta-se radicalmente da ideia popular da Filosofia como disciplina de caráter subjetivo, sem conteúdos, e vem rebater as posições unilaterais, responsáveis por direcionamentos metodológicos que, ou limitam a aprendizagem nessa área à memorização de informações ou, simplesmente, eliminam a possibilidade de avaliar a aprendizagem nessa área.
Referências
ALMEIDA, Aires e COSTA, Antônio Paulo. Avaliação das Aprendizagens em Filosofia. Diponível em: http://aartedepensar.com/avalição.html.Acesso 21 de jun 2021. Acesso: 23 set. 2021.
JUNIOR, José B. de Almeida. Avaliação de Filosofia. Princípios. Natal, vol. 12, nº 17-18, jan-dez. 2005, p. 145-156.
LUCKESI. C.C. Avaliação da aprendizagem escolar. São Paulo: Cortez, 1999.
MURCHO, Desidério. Avaliação em filosofia e subjetividade. http://criticanarede.com/subscrever.html. Acesso em 21 de jun de 2009.