Charles Mills, filósofo radical
Breno Ricardo Guimarães Santos
Professor Adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
17/07/2023 • Coluna ANPOF
Em uma cena memorável de “A Batalha de Argel”, clássico franco-argelino de 1966, do diretor Gillo Pontecorvo, um repórter que acompanhava as tropas francesas, ao ser perguntando por um dos comandantes se havia alguma novidade vinda de Paris, responde que Sartre havia publicado um novo artigo (sobre a guerra). Com olhar preocupado, o comandante pergunta, quase como se perguntasse a si mesmo, “por que os Sartres estão sempre do outro lado?”; e o repórter responde com outra pergunta, “você não gosta de Sartre?”. O comandante responde que não, e que gostaria ainda menos de tê-lo como inimigo. Para o projeto colonial francês, Sartre era um filósofo perigoso. E já não se fazem mais filósofos perigosos como antigamente. Quando os fazem, muitos destes nos deixam revoltantemente cedo, como nos deixou o grande e saudoso Charles Wade Mills (1951-2021).
Conheci Charles pessoalmente em 2014, quando visitei a Northwestern University, nos EUA, ainda durante meu doutorado. Nosso primeiro encontro foi no tradicional brunch de volta às aulas na casa do professor Richard Kraut. Era minha primeira vez nos EUA, minha primeira vez interagindo pessoalmente com colegas e professores da NU, então estava naturalmente deslocado. Mas esse deslocamento durou apenas até o momento em que Charles caminhou em minha direção e se apresentou. Por quase uma hora, conversamos sobre sotaques, o meu transportando um inglês quebrado e o dele transportando um inglês caribenho que, àquela altura, era quase indecifrável para mim. Conversamos sobre o Brasil e sobre as manifestações de rua que, eventualmente, iriam desembocar no golpe de estado de 2016 contra a presidenta Dilma. Mas conversamos também sobre filosofia e como era ser filósofo no Brasil. Do topo do meu pessimismo da razão, ainda mais em um contexto sociopolítico de alta complexidade no Brasil, meu descontentamento com a filosofia profissional aflorou nessa conversa e, a certa altura, culminou em um desabafo: “É muito difícil ser de esquerda e fazer filosofia radical no Brasil”. Charles riu, se aproximou de mim e disse, quase de modo confessional: “Aqui também”.
Durante minha formação, nenhuma outra conversa foi tão importante para mim como essa. Ela me abriu uma curiosidade incontrolável. Passei os meses seguintes absolutamente interessado por Charles Mills e por sua obra. E se não há como contar a história da filosofia política recente sem falar de Mills, é igualmente impossível, para mim, traçar o meu percurso de pesquisa, formação e radicalização filosófica sem colocar Mills no centro dessa história. Mills era um filósofo radical. E eu não digo isso apenas porque ele próprio se localizava no controverso campo do “liberalismo radical”. Mas porque justamente a origem do seu “liberalismo” era uma crítica avassaladora ao projeto supremacista branco que sustenta tanto a ordem capitalista dos EUA e de outras nações afluentes, quanto suas empreitadas coloniais e imperialistas ao redor do globo. Coloco “liberalismo” entre aspas não porque pretendo disputar com o próprio Mills essa classificação. Sequer tenho credenciais para tal. Mas justamente porque, à primeira vista, a filosofia perigosa que Mills produziu parece antitética à tradição liberal que conhecemos durante nossa formação, e as quais ele golpeia com maestria na maioria dos seus escritos. Manterei a escrita do seu “liberalismo” radical entre aspas, não por duvidar dele, mas para introduzir uma notação que julgo útil para a tarefa de separar uma filosofia política da ordem e uma filosofia política contra esta, comprometida com o projeto emancipatório dos radicais e imune aos desvios pequeno-burgueses do pensamento político progressista que encontramos por todos os lados no nosso campo de atuação.
O radicalismo de Mills é o radicalismo de quem conhece profundamente sua tradição, especialmente a tradição dos filósofos perigosos de outrora – sua tese de doutorado sobre o conceito de ideologia em Marx e Engels já antecipava o rigor e a capacidade de síntese que sua obra carrega, e que foram afinados no desenvolver de sua trajetória filosófica. É o radicalismo de quem, ao se engajar com a tradição filosófica e política negra e pós-colonial, decidiu trilhar outros caminhos perigosos, rompendo com a tradição marxista, mas sem romper com as armas da crítica que essa tradição consolidou. É o radicalismo de quem, diante de um dos maiores consensos que a filosofia ocidental já produziu, aquele em torno do contratualismo e da filosofia de John Rawls, decidiu alfinetar a bolha e renovar, com bom humor e elegância, a filosofia política de língua inglesa. E que, por consequência, reanimou a epistemologia com uma boa dose de crítica não-ideal.
O Contrato Racial, sua obra máxima que acaba de ser lançada pela Editora Zahar/Companhia das Letras, é uma valorosa síntese desse radicalismo e do pêndulo dialético que Mills conseguiu promover entre a crítica avassaladora da filosofia e seus caminhos de reforma. Em uma obra curta, mas impactante, Mills inaugura uma nova fresta contestadora na filosofia analítica, um maremoto implacável contra a “calmaria” supostamente apolítica da tradição de língua inglesa pós-McCarthy – que fora antes justamente perturbada por teóricas feministas. Em O Contrato Racial, Mills teoriza sobre o espaço negativo daquela que foi, e ainda é, uma das mais influentes tradições filosóficas. Como um bom radical, e sobre os ombros de muitos e muitas que fizeram o mesmo em suas respectivas áreas de atuação, ele lança luz sobre a raiz teórica e ideológica do contratualismo moderno, identificado por ele como sofrendo de um mal de origem. Esse mal de origem, a partir de uma perspectiva histórica, não precisa ser produto de um afeto negativo intencional por parte dos teóricos dessa tradição. Ele é fruto de uma sociabilidade, ainda moderna em seu modo de organização e produção, que produz sombras e ignorância sobre a realidade vivida dos povos explorados, oprimidos e colonizados. Tal sombra se manifesta na produção de teorias que, intencionalmente ou não, ignoram a natureza não-ideal daquilo sobre o que se teoriza. Se manifesta na concepção de contratos sociais enquanto ferramentas explicativas e normativas que carregam consigo contratos de natureza racial. É a natureza racial do contratualismo que está em xeque nesta e em outras de suas obras. Está em xeque porque o contrato social da teoria política moderna, segundo ele, opera sobre o binômio da ignorância e de um modelo idealizado de sociedade. Ambos os temas são centrais em sua obra. Sua crítica à teoria-ideal-como-ideologia foi presente ao longo dos últimos 25 anos de sua produção, crítica esta que é inicialmente sistematizada em O Contrato Racial. E sua crítica à ignorância enquanto fenômeno socioepistêmico, também sistematizada a partir da ideia de uma “epistemologia invertida” nesta obra, talvez tenha sido o que o colocou efetivamente no mapa filosófico brasileiro na última década e meia.
A publicação da versão brasileira de O Contrato Racial vem em auspiciosa hora. O Brasil e o mundo passam por turbulentas mudanças societárias, por movimentos de fluxo e refluxo político que têm, na maioria das vezes, a raça (suas concepções, ideológicas ou não) como polêmica central. Nota-se isso desde o ressurgimento dos movimentos de caráter nacionalista e de sua ideológica rejeição das “teorias raciais críticas” nos EUA e em outras partes do mundo, como também na resposta organizada à ascensão e domínio quase que perene da supremacia branca nos espaços de poder locais e globais. A crítica das raízes raciais da sociedade e do pensamento político que ela produz são fundamentais para a contraofensiva dos povos racializados mundo afora. Ainda que operando majoritariamente nos espaços de educação formal, ela tem o potencial de armar criticamente militantes e movimentos sociais em busca de emancipação. Para além, é claro, da sua necessária inclusão nos currículos formais das escolas e universidades – onde grande parte desses militantes está –, que há muito estão sob holofote crítico por carregarem consigo as marcas da idealização e da ignorância que a supremacia branca produz política e teoricamente, e que Mills tão eloquentemente critica.
É uma felicidade pessoal e uma realização coletiva poder contribuir com a tradução desta obra e com sua potencial popularização. Compartilho tal alegria com meu amigo e co-tradutor Teófilo Reis, ex-orientando de Mills, e atualmente professor de filosofia da Trinity University – San Antonio (EUA). Se a publicação da edição brasileira deste livro promover uma necessária apropriação da obra e do pensamento de Charles Mills por estes trópicos, incentivando novas traduções, trabalhos de conclusão, disciplinas de graduação e pós-graduação e, talvez mais importante, cursos de extensão, considero que nossa tarefa já foi mais do que cumprida. Se sua memória enquanto pessoa, teórico e radical incorrigível permanecer viva e influenciar novas gerações de filósofos e filósofas, a chama de uma filosofia crítica e fora da ordem permanecerá viva. E se sua obra renovar nossa aposta e esperança em filosofias perigosas, com certeza venceremos.
Ficha Técnica
Título original: The Racial Contract
Autor: Charles W. Mills
Tradução: Teófilo Reis e Breno R. G. Santos
Páginas: 232
Lançamento: 29/06/2023
ISBN: 978-65-5979-095-1
Selo: Zahar
Site: https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9786559790951/o-contrato-racial