Coluna Anpof - Especial Mês da Consciência Negra "Pode a Filosofia da Religião pensar a(s) Umbanda(s)?"
10/11/2020 • Coluna ANPOF
Prof. Dr. Fran de Oliveira Alavina (UFVJM)
Por ocasião do dia nacional da Umbanda, em 15 de Novembro
Dai força meu pai,
Dai força...
A pergunta-título deste texto pode parecer somente uma provocação teórica – com efeito, não deixa de se abrigar um pouco nesse aspecto –; contudo, ela deita raízes bem além do permitido atrevimento. Saiamos, pois, do campo da provocação para aquele da constatação. Uma observação interessada da produção desta área especifica do saber filosófico, no caso brasileiro, não deixa dúvidas de que – para a imensa maioria dos trabalhos, para não dizer quase a totalidade deles – parece inexistir uma religião que se diz essencialmente nacional, assumindo-se como prática de brasilidade na experiência e vivência do sagrado, que se realiza, ao menos oficialmente, há mais de cem anos.
Se a Umbanda continua sendo objeto vivo de saberes como a Antropologia e a Sociologia, nos trabalhos de Filosofia da Religião – e aqui não estamos nos limites da multifacetada ciências da religião – ainda estamos no desafio da incipiência e da fomentação.
Por exemplo, no clássico livro Filosofia da Religião de Urbano Zilles, utilizado entre nós desde os seminários católicos até as universidades federais, não há qualquer menção às práticas religiosas afro-brasileiras. Na coerência, da abordagem e metodologia adotadas pelo autor, de fato não se poderia pensar a Umbanda como objeto da Filosofia da Religião, pois se trata de investigar como os pensadores, todos europeus – isto não é um julgamento, mas uma constatação, pensaram a Religião: na maioria dos casos, pensaram mais propriamente Deus como objeto metafisico e seus respectivos desdobramentos. Em tal registro, religião é sinônimo, quase inelutável, para tais pensadores de Cristianismo, posto que não conheceram a fundo outras formas de sagrado: ou se conheceram, sobre elas não se debruçaram.
Ademais, quando possuem algum conhecimento de práticas outras, compreendem-nas a partir de um parâmetro religioso erguido pela apologética cristã: a secular ideia de que o Cristianismo seria o ápice da constituição religiosa humana, a mais perfeita elaboração da ideia de Deus, sendo outras práticas caracterizadas como primitivas, rudes ou pouco elaboradas. Ou ainda que possuam alguma elaboração, o Cristianismo pode lhe dar o aperfeiçoamento final.
Este mesmo parâmetro faz enxergar nos transes mediúnicos das giras de Umbanda, nos marafos dos Exus ou nas baforadas dos Caboclos coisas inferiores, anedóticas: distantes da dignidade que possuem os objetos que a Filosofia se dispõe a perscrutar. Desse modo, considerar filosoficamente a Umbanda seria um tanto exótico, pois estaríamos no terreno do folclórico, e para alguns mesmo do caricatural. Não se olvide ainda que certa tradição cristã legou a ideia, dada as implicações de suas perscrutações metafisicas-teológicas, de que essas outras formas de vivência do sagrado não passariam de Mitos, quando comparados à vera religio, portanto não sendo possíveis e passíveis de se tornarem objetos da Filosofia da Religião, já que esta não lidaria com simples mitos. Talvez o maior mito seja achar que possa existir forma religiosa institucional capaz de expurgar completamente de seu interior as determinações míticas. Como bem observou um amigo judeu, durante um diálogo sobre o transe religioso: como passou a identificar o mito com a falsidade imaginária, o erro de certos cristãos é considerar que só há mito na religião dos outros(!). Em outras termos, práticas como a Umbanda não seriam propriamente religião.
Assim, talvez alguns leitores que passaram da curiosidade atrevida do título e já chegaram a este parágrafo ainda estejam engolfados no estranhamento, uma vez que foram acostumados a enxergar as religiões afro-brasileiras com as lentes do exotismo, ou foram amedrontados: naturalizando a ideia de que tudo aquilo que está fora de uma ordem hegemônica e dita como naturalmente boa da experiência religiosa só pode ser algo menor e ruim.
Também uma piscadela na lista de trabalhos apresentados no GT de Filosofia da Religião durante o último encontro da Anpof ocorrido em Vitória – em 2018 –, mostra-nos que, embora ocorra uma diversidade dos trabalhos e das pesquisas, nada há sobre as religiões afro-brasileiras. É importante salientar que esta constatação não é juízo de valor sobre a qualidade das pesquisas e dos pesquisadores. Longe disso, a qualidade de seus trabalhos falam por si, ainda mais em uma área da Filosofia que – muitas vezes – é vista com enormes desconfianças e desmerecimentos disciplinares, mas não se pode deixar de notar como preconceitos seculares – que não são apenas acadêmicos – apagamentos históricos e naturalização de certas visões hegemônicas puderam propiciar que pensadores brasileiros, bons pesquisadores, não fossem capazes de pensar práticas religiosas que se dão nas esquinas de suas casas ou estão a poucos quarteirões dos muros da universidade onde estudam e lecionam.
Tais questões que escapam ao simples arbítrio dos pesquisadores dão mostras de como a Filosofia não está, em absoluto, imune às questões de seu tempo, nem pode deixar de se confrontar com problemas que cercam o fazer filosófico em relação às suas determinações nacionais. Por isso, há ainda uma outra questão, que emerge do problema “pode a filosofia da religião pensar a(s) umbanda(s)?” e que, a partir do quadro até aqui apresentado, parece ter como reposta: não quer, não pode ou, no pior dos cenários, nem mesmo se colocou tal problema (!).
Dai força pros seus filhos trabalhar...
Tornar a Umbanda objeto de perscrutação da Filosofia da Religião exige que se saia do recorte clássico da área: problematizar e interpretar o que grandes filósofos pensaram sobre Deus, a fé, o bem e o mal etc. Não adiantará muita coisa recorrer a Feuerbarch, ou a Levinas, posto que práticas como a Umbanda são alheias ao pensamento destes autores, eles não a conheceram, sobre ela não poderiam se debruçar; não se pode pedir deles aquilo que eles não podem nos dar. Se eles podem nos dar o que pensar é na direção de passos semelhantes: se pensaram as experiências do sagrado que lhes eram próxima, tomemos o mesmo rumo. Não há o que temer nas encruzilhadas!
De fato, seria, talvez mais cômico que ínvio, se dar ao trabalho de pensar a Umbanda a partir do que Descartes pensou sobre Deus, ou do que Nietzsche pensou sobre Cristo. Algo do tipo: talvez Descartes pedisse ao preto-velho incorporado provas sobre a glândula pineal e certezas sobre o ponto em que a res extensa e a res cogitans se encontrariam (...). Já Nietzsche – provavelmente – se afeiçoaria das danças e das risadas doces das Pomba-gira, tentando enxergar o que há de dionisíaco nas giras do povo da rua.
Se não se pode partir do que estes autores oferecem – simplesmente adequando suas ideias à nossa realidade –; no entanto, não se pode perdê-los de vista, relegando-os a uma espécie de “arquivo morto disciplinar”, uma vez que este novo objeto, inaudito para tais autores, não poderá deixar de se posicionar ante eles. Buscando sua constituição na diferença, porém expurgando a tutelação. Eles desconhecem a Umbanda, mas a Umbanda os conhece.
Assim, da pergunta se “pode a Filosofia da Religião pensar a(s) Umbanda(s)?”, emerge a questão da filosofia nacional, pois esta prática não é apenas um tipo de vivência do sagrado que se dá entre nós, mas também define a si mesma como religião nacional, como “fé brasileira”. Portanto, ao que parece, este objeto demanda uma filosofia brasileira, capaz de forjar os conceitos, criar as categorias coerentes para se pensar a Umbanda na sua singularidade mais própria de sagrado: com a mesma dignidade que outros objetos da Filosofia da Religião (1).
Aí a pesquisa filosófica terá que lidar também com a sua relação com a tradição oral: não será na interpretação de textos canônicos, mas na fala dos incorporados que esta religião dá ao pensamento um objeto singular de reflexão. O caráter sacro da Umbanda é extremamente vivaz, e, em tal vivacidade, deverá se postar um Filosofia da Religião investigativa que se põe e vai além dos escopos dos dogmas teológicos.
Nesse sentido, algumas perguntas são fundamentais: o que é esta religião chamada Umbanda? Que múltiplas formas de sagrado se abrigam neste nome? Qual sua singularidade e como se constitui sua diferença identitária? Como ela põe e dispõe de novas e antigas formas de crenças? Sua prática tolerante dada na multiplicidade é apreendida adequadamente na simples ideia de sincretismo? O que a faz se definir brasileira e por que somente neste canto do mundo este tipo de prática se dá como possível e própria de uma certa ideia de nacionalidade? Tais questões se dão como um primeiro esforço de uma agenda de trabalho filosófico de longo prazo que ora se inicia e que não esquece o que revela o saber prático umbandista:
Diz que na Umbanda tem mironga,
Tem mironga, meu pai, tem mironga(!)
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1- Felizmente, surgem iniciativas recentes que se debruçam sobre outras formas religiosas como a Umbanda e que estão diretamente relacionadas à filosofia brasileira. É o caso, por exemplo, da obra “A ciência encantada das macumbas” de Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Bem como o recentíssimo Arruaças-uma filosofia popular brasileira que além, destes dois autores, conta com a participação de Rafael Haddock-lobo.