Como escrevem e falam os filo-papers?

Fran de Oliveira Alavina

Professor da UFVJM (Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri)

13/09/2022 • Coluna ANPOF

Sabemos que os filósofos escrevem e falam muito. Laconismo não costuma ser uma característica dos pensadores (e cá estou eu, escrevendo/falando sobre o escrever e o dizer, apressadamente, encarnando a fatalidade do título). No mundo da confusa babel midiática, caímos – rapidamente – na sedutora promessa de que as intervenções discursivas dos filósofos profissionais serão recebidas com certa deferência; que – mesmo participando quase diuturnamente desta seara babélica – é possível ficarmos imunes às determinações da expressividade hodierna. Temos a ilusão de estarmos blindados da inexpressividade cotidiana que reduziu a capacidade expressiva ao gesto farsesco (um experimento assaz interessante, em certa medida cômico, acompanhar as redes sociais dos filósofos profissionais que tentam ser digital influencers: criticam seus companheiros de seara, se veem como portadores da verdade, mas agem e se expressam como os simulacros que repelem). Na compulsão pelo falar e por ser ouvido entre tantas vozes excitadas, nota-se uma mudez. É preciso dirigir o olhar para aquilo que esse mutismo nos mostra: observar o que é despido pelo silêncio do não dito.

Trata-se de pensarmos as condições mais determinantes daquilo que se pode denominar de prosa filosófica, ou seja, os elementos constituintes da expressividade dos atos de fala/escrita/leitura dos filósofos não apenas entre eles, mas também das contaminações e diferenciações em relação às outras formas expressivas com as quais a Filosofia se depara no mundo, e que existem bem antes do falatório dos pensadores. Atente nossos leitores que, enquanto me leem, estão fazendo de acordo com um determinado modo, um modo feito nos limites da tradição da prosa filosófica. E, justamente usando do modo dessa prosa que mais lhes apraz, já podem ter me censurado ou esboçado um sorriso cúmplice. Também repare nosso leitor – que atravessou a viela irônica do título e do primeiro parágrafo – que isso pode parecer algo menor; contudo, quando a afasia é a marca de diferentes expressividades, os filósofos não ficam incólumes. 

Fomos acostumados, por um espectro solidificado na tradição filosófica, a pensar que só pode ser “verdadeira Filosofia” a fala/escrita/leitura que nos faz transpirar, nos tornando ofegantes mesmo sem levantar da cadeira. Tendemos a pensar que os áridos parágrafos da Fenomenologia do Espírito, ou as desérticas demonstrações da Summa de Tomás de Aquino são mais filosóficos que os gracejos dos diálogos de Giordano Bruno, ou mais rigorosos que os belos movimentos serpeantes dos Pensées de Pascal.

Em outras palavras, caracterizamos – muitas vezes sem maiores problematizações – uma determinada forma de pensamento como mais, menos ou completamente não filosófica considerando apenas seu modo expressivo. Tal questão não tem surgido até mesmo no interior do atual debate sobre a existência/inexistência da filosofia nacional? Por sua vez, alguns dos nossos leitores podem considerar que se trata apenas de uma questão estética/estilística, posto que acreditam – ingenuamente –que as diferentes formas expressivas da prosa filosófica refletem apenas uma externalidade do pensamento. Também acreditam que seria apenas uma manifestação das vicissitudes de cada tempo, logo não deve fazer parte do cabedal das sérias preocupações dos pensadores.  

Ocorre que tal questão não se dá ao acaso, nem por mero gosto individual dos pensadores. Bacon não escreve o Novum Organum de modo aforismático apenas como mera escolha estilística; não foi por falta de tempo que Descartes deixou inacabado o único diálogo que principiou a escrever, demostrou por tratados, como também falou por discursos; ou que Espinosa decidiu por mero diletantismo erudito escrever sua Ética ao modo dos geômetras, em uma inusual mímese de Euclides. Temos três exemplos pertencentes à mesma peripécia histórica, porém apresentam formas expressivas distintas, que nem de longe podemos acusar de não exercerem rigorosa filosofia. Se tal se dá entre estes modernos, o que ocorre entre nós?

Do ponto de vista da expressividade filosófica, não há mais esta possibilidade em um mesmo autor ou em um mesmo período ocorrer experimentação de distintas expressões do pensamento. Encontramos diferenças de feições de escrita, mas não propriamente de modos expressivos no aspecto mais profundo; daí se consolidar a cultura dos filo-papers

Trata-se de uma marca profunda da hemorragia iniciada na modernidade, a perda da autodeterminação da Filosofia enquanto saber. Os filósofos já não são capazes de criar e determinar as formas expressivas do seu conhecimento: falam/escrevem/leem como os outros saberes que se tecnificaram no pior aspecto do termo. Como não há mais o mínimo deslocamento entre as formas da produção e as formas do conhecer, pois a ciência cumpriu o vaticínio baconiano se amalgamando à técnica, o modo como lidamos com o trabalho do pensamento mimetizou passiva e completamente as linhas de produção em larga escala dos objetos de consumo imediato. 

Se são produtos para consumo, logo devem ser: uniformes, feitos aos montes para cumprir as necessidades da demanda, em um tempo curto e capaz de extensiva visibilidade. Aspectos concretizados na forma mercadoria, mas que também podemos materializar na forma paper. Somos determinados a falar e escrever como se fôssemos parte de uma montadora; contudo, não apenas “montamos” os produtos, os “distribuímos” para um mercado que se retroalimenta. Os papers, como são fragmentos de conhecimento, são expressão de uma cultura da fragmentação que perpassa todos os âmbitos da vida; muitas vezes, confunde-se a democratização do conhecimento com a mera quantificação desses fragmentos.  

Não há mais república das letras como queriam os renascentistas, pois estamos no livre mercado das ideias. Dadas as determinações pandêmicas, fica ainda pior, pois é desfeita a diferença física entre o espaço físico do ócio e do negócio

Fazemos a crítica do trabalho alienado dos outros, mas temos dificuldade de enxergar as alienações que cercam o nosso, e as várias precarizações que se concretizam quando a Filosofia, de alguma maneira, se adequa ao status quo para sobreviver. Acossados, perece que revidamos dando o que nos é mais importante: a capacidade de autodeterminação do pensamento filosófico. Apegar-se aos muros da universidade como redoma protetora é ilusão, pois é justamente nela que se dá o acoplamento total entre as formas da produção e as formas do conhecer

Às vésperas de mais um encontro Anpof, é propício nos indagarmos sobre nossos modelos de debates, exposição de ideias, construção coletiva de argumentos: pois eles também são nossas formas expressivas. De fato – na maioria das vezes – nem consideramos tais formas expressivas adotadas pelo nosso trabalho de pensamento como uma questão filosófica relevante. É preciso considerá-las, sem cair no reducionismo estilístico.

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