Corpos (In)VISÍVEIS | Especial XX Encontro Anpof

Fábio Abreu dos Passos

Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPI, artista visual e uma pessoa com deficiência.

05/08/2024 • Coluna ANPOF

São várias as camadas de caracterizações existenciais que, justapostas, exacerbam a invisibilidade do corpo da pessoa com deficiência. Essas camadas possuem faces bem definidas: feminino, negro, Queer, obesidade, velhice... Quando algumas ou várias dessas camadas se aglutinam sobre a pessoa com deficiência, há um incremento das práticas de violências sobre esse segmento populacional. É o que ocorre com as pessoas negras deficientes. A violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral degrada ainda mais a existência de pessoas negras deficientes. Por muitos anos, no Brasil, esses atos violentos foram invisibilizados. Somente no ano de 2021 o Atlas da Violência – publicação anual criada em 2016 para divulgar dados da violência cometida no Brasil contra grupos sociais vulnerabilizados – começou a difundir os índices de violência cometida contra as pessoas com deficiência. Nesse sentido, embora o tema da invisibilidade dos corpos das pessoas com deficiência tenha ganhado destaque internacionalmente, através dos estudos das ciências sociais (Sociologia, Antropologia, Ciência Política etc), no Brasil as pesquisas sobre essa temática ainda são escassas, principalmente pelo viés filosófico-estético, que direciona minhas reflexões e meu fazer artístico. Refletir sobre a invisibilidade de corpos de pessoas com deficiência, tenciona um tema ainda pouco explorado. Ao mesmo tempo, materializá-los em trabalhos artísticos fomenta espaços de visibilidade para esses corpos. Tenho buscado expandir o campo de estudos sobre a deficiência, ao convidar a sociedade, através de textos acadêmicos e de trabalhos artísticos, a pensar qual o “lugar” dos corpos das pessoas negras com deficiência em nossas sociedades.

Em nossas sociedades se avolumam dispositivos de controle do corpo, que procuram articulá-lo a partir de ideais normalizadores, construindo uma compreensão binária: de um lado, os normais, os sadios, os brancos, os belos; do outro, os anormais, os doentes, os negros, os feios. Esses dispositivos impõem restrições e proibições sobre os corpos, estabelecendo esquemas de controle que ora rebaixam o estatuto existencial da dignidade de alguns corpos ora os vinculam a padrões estéticos que excluem grandes seguimentos populacionais, como as pessoas com deficiência.

No intuito de construir vias que reduzam os efeitos dos dispositivos de controle, procurarei, no minicurso, pensar o lócus do corpo nu da pessoa com deficiência, articulando filosofia-política, estética e Disability Studies. Os Disability Studies, que emergiram nos anos de 1970 e 1980 no Reino Unido e nos países nórdicos, em um ambiente de lutas pelos direitos das pessoas com deficiência, constituirão um aporte teórico imprescindível para as minhas análises. Foi com o posicionamento político e epistemológico que os Disability Studies foram capazes de fazer com que as pessoas com deficiência fossem vistas como sujeitos de direitos e não meros o(a)bjetos de experimentos biológicos e de intervenções médicas. Procurarei avançar sobre os temas abordados pelos Disability Studies, ao tencionar a questão da invisibilidade da pessoa com deficiência por um viés filosófico-político-estético.

No que tange às minhas práticas artísticas, foram criadas narrativas imagéticas, por meio de desenhos, que sejam capazes de representar realisticamente a deficiência, oferecendo-as à apreciação pública a partir de uma expressividade totalmente imprevista. Essas narrativas serão edificadas por pessoas com deficiência, que foram convidadas a se engajarem na ampliação do repertório estético. Essa proposta é fruto de afetos, pois sinto, cotidianamente, o que é não possuir uma materialidade, um corpo que não seja percebido e tencionado enquanto tal, pois, enquanto paraplégico, sei o que é ser visto como “anormal”.

O meu fazer artístico, que está alicerçado pela poética do desenho, utiliza de grafite colorido sobre folha de papel extra branca, com a intenção de revelar a fluidez, as curvaturas, as torções e as distorções da nudez de um corpo negro com deficiência. Os desenhos procuram expressar fragmentos, em tamanho real, de partes do meu próprio corpo e de corpos de outras pessoas com deficiência. Por intermédio desses desenhos, procurei revelar partes dos corpos das pessoas com deficiência que são ocultados e, assim, apresentar uma beleza que para muitos é inexistente, uma vez que esses corpos são vistos como feios e não merecedores de serem expostos em formas artísticas. Através desses desenhos, procurarei construir uma narrativa visibilizadora desses corpos, capaz de proporcionar um empoderamento de suas idiossincrasias.

A ressignificação dos corpos nus das pessoas com deficiência, a partir de pesquisas e manifestações artísticas, permite propor novas percepções que devem ser tomadas como enfrentamento à abjeção. Esses corpos apresentam-se como questionadores e desestabilizadores dos padrões normativos impostos. Os corpos nus das pessoas com deficiência constituem-se como fenômenos capazes de criar rachaduras nas estruturas que sustentam os padrões estéticos estabelecidos, uma vez que a imagem desses corpos suspende a crença de haver uma métrica universal, que não é capaz de “mensurar” os corpos torcidos, retorcidos, amputados e atrofiados: a potência de um corpo nu de uma pessoa com deficiência. 

O minicurso "Corpos (In)VISÍVEIS: Filosofia e Deficiência" será ministrado pelo professor Dr. Fábio Passos (UFPI/GT Filosofia DEF) no XX Encontro Anpof, em Recife/PE. As inscrições estarão abertas às pessoas já inscritas no evento a partir do dia 15 de agosto.

DO MESMO AUTOR

Filosofia DEF

Fábio Abreu dos Passos

Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPI, artista visual e uma pessoa com deficiência.

21/09/2023 • Coluna ANPOF