Warning: mysqli_connect(): (08004/1040): Too many connections in /home2/anpofo67/public_html/wlib/lib/class/classMysql.php on line 19

Warning: mysqli_set_charset() expects parameter 1 to be mysqli, bool given in /home2/anpofo67/public_html/wlib/lib/class/classMysql.php on line 23

Warning: mysqli_select_db() expects parameter 1 to be mysqli, bool given in /home2/anpofo67/public_html/wlib/lib/class/classMysql.php on line 25
Criatividade social e individual: um diálogo entre a 'poiética pragmática' e teoria dos sistemas sociais autopoiéticos | ANPOF

Criatividade social e individual: um diálogo entre a 'poiética pragmática' e teoria dos sistemas sociais autopoiéticos

Roberto Dutra

Professor da UENF; pós-doutorando na Universidade de Bremen; membro do grupo de pesquisa Poética Pragmática (PPGF/UFBA)

23/05/2025 • Coluna ANPOF

Este ensaio é um esboço de diálogo entre a “poiética pragmática” de José Crisóstomo de Souza e a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Niklas Luhmann. A premissa desta proposta de diálogo é a constatação de que a teoria dos sistemas sociais deve ser entendida como uma perspectiva não estruturalista do social que enfatiza o caráter não sistemático dos sistemas sociais, ou seja, o fato de que a unidade recursiva da vida social se define pelas conexões temporais das práticas e operações e não pela coerência entre suas estruturas.

Sistemas sociais são sistemas de comunicação. Mas comunicação não é a embalagem de conteúdos ou a transmissão de mensagens, mas sim a unidade formada pelo que você faz e como os outros reagem a isso. É o tráfego completo de sugestões de sentido que podem ser aceitas ou rejeitadas. Neste sentido, a unidade de uma comunicação é uma unidade operativa e recursiva fixada apenas quando uma comunicação se torna premissa para outra. 

Esta unidade recursiva comporta a adoção e criação de uma variedade de estruturas contraditórias, desviantes e alternativas em relação aos padrões formais e oficiais usados para descrever de modo simplificado o funcionamento de sistemas sociais. A intuição desta proposta de diálogo é que este caráter não sistemático e recursivo dos sistemas sociais autopoiéticos abre novos horizontes interessantes para pensar a criatividade social e individual, tal como postuladas pela “poiética pragmática”.

Conhecimento e prática

O ponto de vista da “poiética pragmática” (Souza, 2024; 2021; 2020), compartilhado com a epistemologia da teoria dos sistemas de Luhmann (1997), é a tentativa de superar a concepção transcendentalista do conhecimento. Toda forma de conhecimento, inclusive o científico, se define por seu sentido prático em resolver problemas humanos e sociais. Nossos propósitos humanos não são construções arbitrárias da linguagem que ignoram os atributos do mundo, mas, ao contrário, encontram na lida e nos fazeres práticos com os atributos mundanos sua referência primeira (Souza, 2020, p. 11). A definição dos problemas e das soluções é socialmente produzida de forma prática e operativa, em acontecimentos e rotinas cotidianas.

A “poética pragmática” afirma uma concepção prática radical da realidade e de sua relação com o conhecimento e o sentido, pensados em primeiro lugar como “crenças” e hábitos de ação. Assim definido, o conhecimento nunca começa com a dúvida cartesiana, mas sim com os preconceitos que temos à mão. A lida com problemas e soluções não começa com a dúvida, mas sim com a busca e fixação de uma camada de certezas que em certas condições pode ser abalada e assim ensejar a dúvida, a imaginação e a criatividade.

Sociologia pragmática e o problema da criatividade

Minha hipótese é que um diálogo produtivo entre “poiética pragmática” e teoria dos sistemas torna possível uma sociologia sistêmica pragmática. Esta possibilidade deve abarcar características vistas como desejáveis em uma sociologia pragmática, a começar pela tentativa de retirar de Marx o elemento metafísico, essencialista e substancialista, sublinhando o aspecto dinâmico e contextual da cognição e da criatividade humanas na vida social. (Souza, 2024; Souza, 2021, p. 23). Nesta direção, uma proposta exitosa é a teoria da criatividade da ação de Hans Joas (1996). Como em outros autores engajados na construção de uma sociologia pragmática, o social é definido como problemático e instável, e sua estabilidade é sempre resultado dinâmico e contínuo de processos criativos que produzem a ordem social e simbólica.

No entanto, uma sociologia pragmática pode também distinguir e relacionar criatividade individual e social. Se partirmos de uma “concepção subsocializada do indivíduo”, como é o caso da “poiética pragmática” e da “teoria dos sistemas”, essa distinção deve ser tratada não apenas como “analítica”, mas como uma distinção real entre sistemas sociais e sistemas psíquicos. A criatividade individual seria uma propriedade dos sistemas psíquicos, afetado por sua corporeidade e por seus acoplamentos de sentido com o social, mas sem nunca ser reduzido ao social. Trata-se da emergência de novas soluções e estruturas de personalidade diante de situações de incerteza. A criatividade social, embora seja influenciada pela criatividade individual, é uma propriedade de sistemas sociais. Trata-se da emergência de novos padrões de conduta comunicativa que funcionam como soluções inovadoras para problemas sociais como decisões políticas e escassez econômica. Eventos criativos na personalidade não resultam diretamente e por sua própria dinâmica em criatividade social e vice versa. Processos contingentes de tradução são necessários entre as duas formas de criatividade.

Sociologia sistêmica pragmática  

Embora estes processos de tradução sejam necessários, a criação individual de soluções para problemas socialmente colocados pode ser uma fonte importante para a emergência de processos criativos nas diferentes esferas sociais. A continuidade da vida social requer que algo novo seja inventado e trazido ao mundo social, e isto pode começar com uma variação individual nas práticas sociais e prosseguir pela seleção desta novidade como padrão difundido em contextos sociais mais amplos, como organizações e grandes sistemas funcionais como economia e política.

Neste sentido, a possibilidade de distinguir e relacionar criatividade social e individual trazida por uma “sociologia sistêmica pragmática” me parece uma importante vantagem em relação às versões da “sociologia pragmática da ação”, como a de Joas, que não distingue e não relaciona adequadamente o social e o individual. A sociologia sistêmica não desconsidera a ação, mas ela recusa definir a ação como elemento exclusivamente social, pois o agir envolve elementos sociais e extrasociais. A preferência é delimitar o social e o individual a partir de suas formas específicas e concretas de operação, para então identificar suas possíveis relações.

Criatividade, democracia e construcionismo institucional policêntrico

Mas existem também importantes diferenças entre as duas tradições teóricas. A primeira é que o pragmatismo, diferentemente de Luhmann, acredita na disponibilidade em massa, democrática e popular da criatividade individual e social. No entanto, existe ou pode existir também um Luhmann de “esquerda”, como fonte de liberação de contingência e criatividade popular em diversos sistemas da sociedade. Nesta leitura que faço de Luhmann, novas descrições podem ampliar a contingência observada e o horizonte de soluções possíveis para problemas socialmente colocados, destacando possibilidades de transformação e reprogramação já disponíveis nas variedades regionais da sociedade mundial, mas também diante de estruturas efetivamente inovadoras a serem inventadas.

A segunda diferença é a ênfase de Luhmann na diferenciação da sociedade em sistemas funcionais autônomos (Luhmann, 1997), com valores, códigos, estruturas, conflitos e dinâmicas evolutivas próprias. Não encontramos essa ênfase nem na “poiética pragmática” nem nas variantes da sociologia pragmática da ação. No dia a dia, o surgimento de problemas incontornáveis que desafiam a criatividade individual e social é sempre o surgimento de problemas especificamente políticos, econômicos, científicos, educacionais, jurídicos, tecnológicos, militares, esportivos, amorosos, artísticos e religiosos.

A ideia de uma criatividade social democrática e funcionalmente diferenciada, voltada para impulsionar processos de reprogramação em diferentes sistemas funcionais tendo por base inovações sociais oriundas de amplos seguimentos sociais, deve ter como foco principal processos de construção institucional capazes de conferir durabilidade e generalização às inovações sociais. Uma simples interação entre duas pessoas pode ser criativa na medida em que nela uma nova forma de conduta é testada e aceita, sem que esta inovação tenha maiores repercussões.

Para que uma inovação comunicativa possa repercutir de modo mais duradouro e generalizado é preciso que ela seja selecionada como um novo padrão por sistemas mais robustos como as organizações. Podemos chamar esta variante da criatividade social de construcionismo institucional no sentido de um processo de inovação de maior durabilidade e generalização, capaz de desencadear mudanças estruturais não apenas nas organizações que o promovem, mas também em sistemas mais amplos como os sistemas funcionais: a economia, o ensino, a política, o direito, o esporte, a arte, a religião.

Estamos falando de inovações empresariais, pedagógicas, ideológicas, jurídicas, esportivas, literárias e religiosas selecionadas por organizações, mas com um trajeto que vai além das organizações, tanto em sua emergência quanto em sua repercussão. Todas estas inovações, embora dependam de organizações para sua durabilidade e generalização, podem assumir a forma de programas de sistemas funcionais específicos, ou seja, de estruturas que orientam a produção e o acesso aos desempenhos sistêmicos. Em termos marxistas: os programas definem o controle e o uso dos “meios de produção” e da “riqueza social” de cada sistema funcional. Trata-se de alternativas institucionais sobre a qualidade, a extensão e a composição social dos produtores. 


Bibliografia

JOAS, Hans. Die Kreativität des Handelns. Frankfurt: Suhrkamp, 1996

LUHMANN, Niklas. Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, vol. 1 e 2, 1997.

SOUZA, José Crisóstomo de. O avesso der Marx. Rio de Janeiro, Ateliê de Humanidades Editorial, 2024.

SOUZA, José Crisóstomo de. “Introdução – Poética Pragmática: uma coletânea como jam session”. In:  SOUZA, José Crisóstomo de (org.). Filosofia, Ação, Criação. Poética pragmática em movimento. Salvador: Edufba, 2021, p. 11-48.

SOUZA, José Crisóstomo de. “A World Of Our Own: A Pragmatic-Poietic Perspective”. Transcience, V. 11, N. 2, 2020, p.1-27.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.