De corpos e sonhos; de pobres e ricos...

Luís Fernando Crespo

Prof. Dr. (USF)

14/02/2023 • Coluna ANPOF

Corpo e pensamento constituem os meios de acesso do indivíduo ao mundo que não é si próprio. O cuidado com o corpo é necessário do mesmo modo que o cuidado com o pensamento. Saúde física e saúde psíquica e intelectual são necessárias quando se objetiva um tipo de ser humano integral e pleno (ainda que as ideias de integralidade e plenitude sejam puramente ideais).

Partindo da psicanálise, entendo que o sonho seja um conjunto de fagulhas que, após uma construção mental, aparecem “organizadas” de modo a permitirem um discurso por parte de quem sonha (claro, a imagem é uma redução). Se puder fazer uma rasa comparação com uma caixa preta de avião (que, na verdade, é de cor laranja), o sonho que podemos relatar é a tradução racional das fagulhas que saem da caixa. Tradução apenas enquanto uma formulação. A grande diferença parece ser que, enquanto a caixa pode ser aberta e seu conteúdo acessado, principalmente, na ocorrência de um desastre, no caso do sonho, na morte da pessoa, todo conteúdo se vai com ela.

Freud crê ser possível, a uma pessoa, lidar melhor com a vida a partir do que ela pode interpretar do conteúdo que lhe aparece em sonho – segundo a recepção, na vida de vigília, da representação de conteúdo.  Mas isto é trabalho pessoal que depende de grande esforço. A análise é, de certa maneira, a organização deste trabalho.

As coisas acontecem do modo exato como Freud as nomeia e relaciona? Possivelmente não; pois ele não está abrindo um relógio para entender o funcionamento de algo complicado. A existência humana não é complicada, mas complexa; e o conteúdo com o qual ele trabalha é algo extremamente fluido, que assume uma forma diferente a cada momento. O pensador buscou a singularização, tomando a pessoa dentro da existência humana – ou seja, ainda que busque encontrar (e encontre!) algumas estruturas comuns, o foco é o indivíduo.

Talvez, Freud tenha sido gênio não na criação, mas na inovação (e corro enorme risco ao fazer tal afirmação): o pensador utilizou sua habilidade para relacionar conceitos já existentes (principalmente na filosofia), por exemplo: inconsciente, angústia, solidão, práticas de si etc. É certo que o autor não simplesmente tomou os conceitos do modo como foram construídos, mas os reformula e reenquadra. Ele apenas fez isso, mas encontrou a linguagem que se fazia necessária para que uma vivência humana pudesse ser manifesta – em tal linguagem, elementos estruturais são apresentados. É olhar para o todo (filosofia), mas buscar uma possibilidade de aplicação no singular, tomando e revisitando conceitos da filosofia, da biologia e da medicina, entre tantos outros.

Atuar segundo a referida interpretação possível (sonhos) seria condição para lidar melhor com o que rege a vida pessoal. Bom seria se todas as pessoas pudessem realizar este trabalho de si. Em uma digressão, lembro-me, aqui, de Foucault, em A hermenêutica do sujeito, falando de Sócrates e sua recomendação do cuidado de si – este, que se dá por um conjunto de práticas de si. Mas esta prática não ocorre para todas as pessoas, e eu tomo dois lugares sociais para pensar tal impossibilidade: o lugar do pobre e o do rico.

Pobreza e riqueza são dois lugares a partir dos quais a vida é construída: não se trata de pensá-los como algo dado, pois algo dado eu recebo (ou até engulo). Significa que não podemos entender que a pobreza e a riqueza simplesmente se dão na vida; é necessário reverter as posições: a vida é que se dá nestes lugares. São lugares construídos, coletivamente, em benefício de determinados grupos – enquanto histórico, este processo de construção que vem de milênios (não demarcável) corre o risco de parecer natural.

Os lugares sociais permitem o estar nos outros lugares – por exemplo, na psicanálise, que foi construída em e para um contexto. Muito se fala em descolonizar a psicanálise, mas não se trata de tarefa fácil, já que, ao longo do tempo, ela se sustentou em determinado modelo (que ainda encontra força). Ao lugar onde está a psicanálise, o pobre não chega (ele realmente não vem!) – para o pobre, o trabalho de si resta sem chances mínimas de ocorrer. Se o sonho já é algo de difícil acesso, para o pobre se torna pura fantasia. Neste lugar, talvez sejam encontradas vias de resolução mais simples e acessíveis: lendo o horóscopo e jogando no bicho seria possível dar conta da vida e dos sonhos.

Pergunto-me como seria a psicanálise se a teoria freudiana fosse construída sobre a realidade de quem nada tem, dos desprovidos das mínimas condições sociais; pois os relatos de seu autor trazem elementos da vida de quem estava em determinado lugar social (por exemplo: uma família estruturada em papeis bem definidos, um trabalho que traz certa satisfação pessoal, a possibilidade de se fazer uma viagem, determinado “conhecimento cultivado” etc.).

“Ah, mas a estrutura psíquica seria a mesma, não importando a classe social!” Ainda que pudéssemos supor uma mesma estrutura, a teoria não seria a mesma. Excluir o elemento de classe é acreditar ingenuamente em uma teoria isenta. A psicanálise não pode prescindir de Freud, pois ele foi seu iniciador e, talvez, o dono da intuição mais completa sobre a totalidade do indivíduo – mas, a partir dele, pode e deve alcançar mais.

E o sonho do pobre resta ainda por conhecer, enquanto o do rico serve como caso para se entender a existência humana. Por outro lado, o corpo do pobre é o mais conhecido. É o mais despudorado, já que há algo mais importante com o que se preocupar (lembro-me dos relatos em Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus). É o mais objetificado pela história escravagista: o corpo negro como força de trabalho ou para satisfação sexual. É o mais instrumentalizado, quando alugado para o prazer nas ruas ou na produção de filmes. É possível ver o corpo do rico em tais situações?

Vivemos em uma sociedade na qual o ideal, o sonho e o desejo vêm pelo rico, enquanto a carne crua e esfolada é do pobre. Não se trata de, simplesmente, abrir as portas da análise (cobrar mais barato?!?), pois, enquanto a psicanálise não for uma direção possível à pessoa, esta não vem.

Qual sua angústia? Nenhuma; por isso, não preciso. Nada é angústia quando tudo é angústia. Mas, deixemos isso tudo para lá; vamos interpretar sonhos.

DO MESMO AUTOR

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