De(s)colonialidade e o cânone filosófico
Viviane Bagiotto Botton
Doutora em Filosofia (UNAM), pós-doutoranda em Filosofia (UERJ) e professora da Escola As Pensadoras
17/11/2021 • Coluna ANPOF
Antes de conceituar o que ficou conhecido há 40 anos como decolonialidade, e que muitos de nós preferem usar com “s”, descolonialidade, a fim de encontrar um modo mais condizente com nosso idioma português, é importante definir o que neste mesmo período conceituou-se como colonialidade. Trata-se de um sistema ou regime político social, e, portanto, normativo, identificado como persistente em nossas culturas ocidentais e ocidentalizadas, especialmente aqui na América Latina, desde a sua invasão pelos europeus colonizadores. As linhas mais salientes da colonialidade são a separação racial (étnica) dos corpos das populações e sua equivalente (des)valoração hierárquica, promovendo a rejeição, desaparição e constante exclusão de certos modos de vida e formas de existir em detrimento de outra, única e específica, forjada para ser o modelo e a referência, a qual caracteriza o norte e o cânone do humano e daquilo que se convencionou chamar de civilização.
A invasão colonial, neste sentido, é marco temporal de um modo de pensamento e forma de inteligibilidade que se impôs e sobressaiu sobre outros e que forjou uma certa idéia de humano e de humanidade que durante muito tempo se supuseram como universais e atemporais ou a-históricas, mas que efetivamente reforçaram a separação dos exemplares da espécie em segmentos. A crítica a este modelo a partir do de(s)colonial sugere, portanto, uma revisão profunda de conceitos e processos tanto em nossos modos de pensar, fazer teoria e produzir conhecimento, quanto em nossas propostas éticas humanistas e humanitárias que pautam o campo social e subjetivo sem considerar os meandros da colonialidade.
A colonialização das Américas coincide com o da modernização no Ocidente e daí decorre que colonialidade e modernidade são coproduções de um mesmo regime simbólico (e também real) que forjou um modelo epistêmico, social e subjetivo. Todas as alteridades formuladas a partir deste período e envolvidas nesta coprodução parecem ter oposto um Nós (singular, único, branco, masculino, racional, pensante, civilizado, em evolução) a um Outros (múltiplo, inclassificável, de cor, sem gênero definido, irracional, perigoso, selvagem, atrasado), assentando e fundamentando uma série de novos e modernos acordos sociais (também comercias e de exploração) onde uma ideia de Europa foi reforçada e onde, principalmente, se formou um humanismo universal que na prática rejeitou diferentes formas de vida e excluiu um grande número de membros da espécie humana em função de seus corpos e hábitos.
No contexto da de(s)colonialidade também ganham sentido ideias como epistemicídio, racismo estrutural, sistema sexo-gênero, normatividade ontológica, e tantas outras que compõem a crítica ao pseudouniversalismo do pensamento intelectual, ao humanismo a la européia (andro-falo-euro-branco-centrado) e à segregação social. A colonialidade também é marcada por uma certa forma de governabilidade de si que há séculos define nossas subjetividades e determina a reprodução de modelos de ser, de pensar e de reproduzir modos de viver. Nesta governabilidade colonialista operam valores como o da meritocracia, que costuma maquiar todos os marcadores do modelo presente em alguns humanos e ausente em outros, servindo assim para perpetuar a segregação e a exclusão racial, sexual e cultural, num movimento contínuo de resiliência colonialista e de manutenção deste regime político-subjetivo.
Frente a tal quadro, as nossas produções filosóficas e os nomes dos filósofos e filósofas que entram para o panteão dos grandes e aparecem como ungidos institucionais que compõem o cânone também estão marcadas pelas linhas que conformam a colonialidade. E mesmo que as estruturas desta pareçam vir sendo identificadas, denunciadas e dinamitadas de modo contundente nas últimas décadas (especialmente depois da popularização dos trabalhos dos chamados estudos pós-coloniais e dos do grupo decolonialidade/modernidade que só agora, quase meio século depois, ganham força e espaço) ainda há muitas formas enraizadas de conservadorismo institucional e acadêmico que insistem no modelo e na modelização do pensar e do nosso fazer teórico colonialista.
O que há nesta disputa entre a manutenção do cânone e as propostas de sua reelaboração, especialmente no domínio específico da filosofia é, por um lado, o inegável perspectivismo de sua estruturação e da escolha dos nomes dos filósofos; e por outro os problemas da efetivação da reestruturação do cânone. No primeiro caso, esta palavra, filósofos, dita no masculino, marca explicitamente o recorte de gênero de seus representantes, assim como seus nomes e referências marcam de modo mais sutil a predominância de sua origem e a raça. Do fato de que é inegável que estes filósofos são preponderantemente senhores europeus ligados a alguma escola ou tradição, ainda que contestatória, igualmente européia, e que em sua maioria tenham sobrenome de pessoas brancas e de fato o sejam, somos levados a desconfiar dos processos que os escolhem. Assim temos um primeiro questionamento, básico e direto, do cânone filosófico: a falta de representatividade de seus seus membros. Enquanto a população humana mundial é formada majoritariamente por mulheres e pessoas não-brancas, é no mínimo estranho que a filosofia seja representada em sua maioria por homens brancos, por mais acidental que isso possa ter se dado. Só poderíamos aceitar uma naturalidade neste dado, caso aceitemos que a filosofia já não é uma atividade crítica, mas uma confraria institucional e específica com um modo único, igualmente institucional e específico, de se expressar e representar.
No segundo caso, e de modo menos direto, nesta disputa temos todo um conjunto de desafios práticos que se estabelecem em nossas salas de aulas, em nossos trabalhos de pós-graduação, em nossos artigos e em nosso pensamento filosófico de modo geral, que nos coloca diante de um dilema - falso e falacioso - que é o de incluir ao cânone mais mulheres, mais pessoas negras, mais indígenas, mais pensamentos não-europeus, diversos e plurais, e assim promover a efetiva ocupação dos silêncios e apagamentos historicamente produzidos em nossas academias e grupos de trabalho.
Não são raras as vezes em que em nossos congressos e reuniões pedagógicas nos deparamos com as questões: como incluir e fazer mais diverso e plural nossas pesquisas, nossas ementas e nossos currículos? Como fazê-lo sem desqualificar a nossa área de conhecimento? Como fazê-lo sem perder a essência do filosofar e tampouco o reconhecimento das comunidades científica e os financiamentos de nossas pesquisas? Como manter o rigor e a identidade da filosofia ao abrir seu fazer a outros modos de inteligibilidade e cosmologias? Tampouco são raras as vezes que nas últimas décadas lutamos para a reelaboração de políticas públicas e para promover ações afirmativas de inclusão e acesso às universidade e ao ensino de filosofia aos que foram historicamente excluídos de nossos programas institucionais, cursos de extensão universitários, coletâneas de publicações e conjuntos de traduções.
Estes esforços têm sido extremamente importantes para a descolonização e estão reinventando nossos espaços de intelectualidade e nosso cânone, porém estão distantes do compromisso anti-colonial ou descolonizador. Buscar incluir também é um modo de manter a estrutura e as metodologias presentes no regime que forma o cânone, já que na medida em que inclui os diferentes não modifica e sequer questiona cânone enquanto conceito, enquanto régua (cana) de medida, ou modelo e representatividade (kanon). Ao acrescentar os excluídos na lista canônica, lhes damos visibilidade e voz, mas também damos anistia a tudo que operou até então para que uns fossem incluídos nela. A reformulação do cânone só ganha sentido anti-de(s)colonial se isso significar a ruptura total e radical com a própria idéia de cânone.
Tal ruptura radical não significa, por sua vez, a exclusão permanente de filósofos como Platão, Aristoteles, Hobbes, Kant, Hegel, Marx, Heidegger, Arendt, e outros dessa longa tábua de pensadores que temos por referência, mas sim o extermínio dos processos que os fizeram ser os escolhidos e não outros. Romper com o cânone é um movimento de dar fim e cabo aos mecanismos que fez alguns chegarem a ser conhecidos, enquanto tantas outras pessoas oriundas de países periféricos e de outros pontos do globo jamais o foram. "Acaso estas pessoas e povos não pensavam?", perguntaria alguém pouco familiarizado com os processos acadêmicos de nossos corriqueiros de diálogos entre iguais. E a resposta menos cínica a tal pergunta parece ser a negativa: "claro que pensavam, mas o faziam de um modo que não coincide em termos e métodos com o convencionalmente definido como pensamento. Justamente por isso, ficaram de fora”.
Esta pergunta faz visível a historicidade e a regionalidade do pensamento (dito) universal e seus modos de expressão, e isso faz de nós, professores e pesquisadores em filosofia, exímios representantes do apostolado da filosofia, que ao exigirmos a manutenção da mesma rigorosidade metodológica e da leitura obrigatória de uma lista de clássicos, suspendemos grande parte da criticidade e da possibilidade (re)inventiva deste domínio. Inclusive ao requisitarmos e naturalizarmos o cânone, através da conclamação da origem grega da filosofia, e ao defendermos com frequência que mais homens e mais europeus (brancos) são seus representantes porque isso reflete uma história maior das sociedades ocidentais patriarcais, já estamos reduzindo o papel crítico de nossa atividade. Não podemos naturalizar esta história mundial na qual a filosofia se insere, esquecendo-nos de que se tratou de processos violentos.
Aqui na América Latina, sociedades e populações inteiras foram exterminadas cultural e materialmente por genocídios bacteriológicos, pelas evangelizações, pelas armas dos colonizadores e pela assimilação, e isso impediu a presença e a expressividade filosófica destes povos. É preciso lembrarmos que no próprio interior do Ocidente, milhares de mulheres foram queimadas em fogueiras por pensarem e se expressarem simplesmente por serem mulheres, e isso as impediu de ocupar qualquer lugar no pensamento. É preciso lembrarmos, portanto, que os processos de canonização de alguns brilhantes e geniais como os conhecemos hoje, está manchado pelo esmagamento e extermínio de muitos outros, quiçá também brilhantes e geniais como dificilmente os conheceremos, mas que doravante precisam encontrar espaço.
E se em meio a tudo isso, ainda ficamos com alguma preocupação com a possível perda da essência crítica da filosofia, será preciso recordarmos que este é um pseudo-problema, já que controlá-la e marcar sua finalidade é um modo de afasta-la do que é fazê-la dogma e confraria. À pergunta: "como reinventar os modos de se fazer filosofia, incluindo outras formas de pensamento, não-colonialistas, sem perder a seriedade e o rigor?" se esvazia justamente quando entendemos que é condição necessária para de(s)colonizar o filosofar o desconhecimento do destino ou finalidade deste movimento. E se o rigor ainda for uma questão, especialmente nos nossos contextos universitários onde há o compromisso com o resultados dos processos de ensino-aprendizado e pesquisa, talvez seja importante lembrarmos que o que o garante não é a finalidade, mas a própria criticidade da filosofia que certamente deve seguir sendo constantemente utilizada durante seu processo.