Do perigo de pensar a moral sem pensar na política: como Simone de Beauvoir pode nos ajudar a conciliá-las?

Lucas Joaquim da Motta

Mestrando em Filosofia na UFSCAR

07/02/2025 • Coluna ANPOF

É fato que Simone de Beauvoir tem chamado cada vez mais a atenção dos adeptos de filosofia política e temas relacionados. Se antes Beauvoir sequer era tida como filósofa, raramente havendo alguma dissertação ou tese propriamente voltada para esta autora, hoje vemos que esse cenário está mudando – felizmente. Em outro sentido, é bem verdade que a conciliação da moral com a política é um desafio diante da pluralidade de culturas e sociedades que compartilham a mesma realidade; e um dos principais esforços de Beauvoir, que favorecem essa relação dela com a própria filosofia, é o de seus escritos em mostrar a inseparabilidade entre ética, moral e política, o que nos possibilita entender o perigo de pensar um separado do outro.

A filosofia de Beauvoir nos auxilia a conciliar moral e política à medida que considera essa pluralidade, ao mesmo tempo em que compreende como os mais diversos progressos e retrocessos sociais afetam não apenas este ou aquele indivíduo, mas toda uma conjectura social. Essa conciliação que Beauvoir nos oferece parte tanto de um problema a ser resolvido quanto de uma evocação da própria solução desse problema. O problema da moral existencialista da autora é o seguinte: se toda fonte de valor advém da pluralidade de indivíduos concretos, singulares, que se projetam em direção aos seus próprios fins a partir de suas situações cuja particularidade é tão irredutível quanto a própria subjetividade, originalmente separados, como eles poderiam se reunir concretamente? E a solução é esta: a conciliação entre esses indivíduos se daria por uma moral que se recusaria a negar a priori que, sendo existências separadas, possam ao mesmo tempo estar ligadas entre si e que suas liberdades singulares possam forjar leis válidas para todos[1].

Para essa linha de raciocínio, a separação entre moral e política é uma separação que torna inviável qualquer compreensão legítima do mundo humano, uma vez que, enquanto a ética aparece para o existencialismo não como o respeito formal a leis eternas e supraterrestres, mas como a busca de um fundamento válido para a história humana, tal como ela se desenvolve em nossa terra, a política não se restringe ao simples ajuste dos meios eficientes em direção a um fim incondicionado, mas à criação e à construção perpétuas e incessantes do fim pelos meios usados para produzi-lo[2]. Na denúncia de questionar esses mecanismos em termos éticos, que ocorrem em grande demasia, e como a produção dos acontecimentos políticos não é um fato isolado da vida ético-moral, Beauvoir nos convida a pensá-los junto à sua moral da ambiguidade. Uma crise da democracia, por exemplo, é uma forma de mostrar essa impossibilidade de separar ambos: se nossas condutas indicam a própria maneira de nos realizarmos enquanto indivíduos projetados para o futuro (isto é, enquanto transcendências), se todo meio de execução dessas condutas, feito por e para seres humanos apenas, deve estar relacionado com o fim a que elas se propõem, a política é a estrutura pela qual a segurança e a garantia de exercer a própria liberdade se tornam possíveis.

Mais especificamente, na ideia de uma moral voltada para essa liberdade, vemos que ela ainda precisa ser criada, isto é, é a situação contemporânea que demanda uma solução propriamente moral para o estatuto político do mundo humano. Não se trata, pois, de uma moral fundamentada em princípios anteriores à experiência vivida, mas de uma moral que se baseia em escolhas reais e concretas; e, no entanto, é crucial rejeitar, segundo Beauvoir, qualquer princípio promulgado pela má-fé da “seriedade”, que se apegaria a valores incondicionados em prol da substituição da individualidade pela abstração. A seriedade não coloca em questão a individualidade, mas sim os valores que escapam a nós mesmos, como um certo ideal de Homem, de Líder, de Defensor, de Patriota, por aí vai. Sabemos que esses arquétipos nada mais indicam do que pessoas que não hesitariam em almejar seus objetivos, mesmo que fosse preciso, para isso, sacrificar outrem, enquanto reivindicam ser reconhecidas como sujeitos. Por exemplo, certos indivíduos podem almejar o porte de uma arma com a justificativa de defender sua família; outros eventualmente podem julgar as ações alheias em nome da promessa de uma salvação ou condenação eternas; e, ainda, outros podem optar pela pregação de uma carga de valores que tenderia a oprimir aqueles que não a seguem. Mas todos eles esquecem que a moralidade não reside nessa supervaloração do incondicionado: é no mundo de valores éticos que o indivíduo se realiza social e politicamente conforme a sua liberdade se projeta em direção à sua própria realidade, por meio de um retorno à liberdade que o estabeleceu. “Mas essa vontade implica que a liberdade não se abisme em nenhuma meta e também não se dissipe em vão sem visar a nenhuma meta; o sujeito não deve buscar ser, mas desejar que haja ser; querer-se livre e querer que haja ser é uma única e mesma escolha: a escolha que o faz de si mesmo enquanto presença no mundo. Não se pode dizer nem que o homem livre quer a liberdade para desvelar o ser nem que ele quer o desvelamento de ser para a liberdade; trata-se de dois aspectos de uma única realidade. E pouco importa aquele que se considera, ambos implicam a ligação de cada homem com todos os outros”[3].

Assim, a moral não se separa da política do mesmo modo que o individual não se separa do coletivo, isto é, as relações de poder e o convívio social reforçam a condição particular de cada indivíduo na realização do fim, mesmo promulgado em um contexto de situações históricas que se mostra resistente para desvelá-la. Não é mais o bem-comum em geral, o valor universal da moral que está em jogo segundo Beauvoir, porque cada escolha deve ser feita levando em consideração essa relação que podemos denominar, a partir da conciliação beauvoiriana entre moral e política, de projeto político: os meios adotados influenciam o objetivo desejado, enquanto o resultado alcançado reflete a maneira como se age. Nesse sentido, é que se reforça a concepção central de ambiguidade em Beauvoir, que favorece fortemente essa discussão, onde a responsabilidade ética permeia todos os aspectos e todos os momentos da decisão. Afinal, “reconciliar moral e política é, pois, reconciliar o homem consigo mesmo, é afirmar que a cada instante este pode assumir-se totalmente” [4]. Sem isso, o perigo é nítido: adventos de processos que podem ameaçar a democracia (ainda que esta sempre esteja ameaçada, na verdade), insatisfações populares devido a carências estruturantes, ausência de meios que garantam a própria soberania da liberdade humana – e liberdade aqui é no sentido de conciliar-se moralmente através da liberdade de outrem.


Referências

_____. Por uma moral da ambiguidade. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

_____. “Idealismo moral e realismo político”. O existencialismo e a sabedoria das nações. Trad. Mário Matos. Lisboa: Esfera do Caos, 2008.

_____. “Que é o existencialismo?” Trad. Lucas Joaquim da Motta. Pólemos, Brasília – DF, n. 28, v. 13, 2024.


Notas

[1] BEAUVOIR, S. Por uma moral da ambiguidade. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 21.

[2] _____. “Que é o existencialismo?” Trad. Lucas Joaquim da Motta. Pólemos, Brasília – DF, n. 28, v. 13, 2024, p. 492.

[3] _____. Por uma moral da ambiguidade. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 21, grifos da autora.

[4] _____. “Idealismo moral e realismo político”. O existencialismo e a sabedoria das nações. Trad. Mário Matos. Lisboa: Esfera do Caos, 2008, p. 62.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.