Duas visões de 'mundo'
Susana de Castro
Professora do Departamento de Filosofia e do Programa em Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof.
07/09/2021 • Coluna ANPOF
No mês em que se comemora a independência do Brasil, quando estamos também próximos a comemorar 200 anos de independência, povos originários de todas as etnias estão reunidos no planalto central para impedir que o Brasil adote o marco temporal da constituição de 1988 como determinante da propriedade da terra. Para se ter uma ideia do impacto que a aprovação desse marco temporal traria, só no Estado do Ceará há ao menos 22 territórios reivindicados por povos indígenas, dos quais apenas dois estão regularizados: a terra Córrego João Pereira, da etnia Tremembé, em Itarema, e a reserva Taba dos Anacé, do povo Anacé, em Caucaia. As outras 20 áreas estão em fase de demarcação ou enfrentam algum tipo de pendência judicial, e das 22 terras reivindicadas pelos indígenas, apenas duas solicitações foram formalizadas antes de 1988. Assim, caso o marco temporal seja aprovado, pelo menos 20 etnias teriam de deixar seus territórios de origem em eventuais decisões judiciais decorrentes do julgamento do STF (jornal O Povo, 1/9/21). O Marco Temporal sendo aprovado é um ato de violência contra os povos Indígenas que já existiam muito antes de 1988, na verdade muito antes de 1500.
Nossas informações sobre como teria sido a vida no Brasil antes da chegada e tomada da terra pelos portugueses é muito diminuta. Os textos escritos pelos colonizadores nos primeiros séculos da colonização não podem nos dar um retrato fiel, porque neles se misturam medos e desejos dos conquistadores. Mas um desses documentos se destaca graças a seu caráter de descrição do encontro inaugural de ‘duas visões de mundo’, a Carta de achamento de Pero Vaz de Caminha. Carta destinada ao monarca português, retrata de forma resumida os dias em que a armada portuguesa ficou ancorada em Porto Seguro. Este foi o primeiro contato oficial dos invasores com os “homens e mulheres pardas que andavam com suas vergonhas a mostra”. Há na carta várias pistas que analisadas aos olhos atuais mostram a ausência total de escuta e interesse por parte dos portugueses por aquela gente que andava nua e falava uma língua, o tupi, que ninguém entendia. Voltar ao texto desta carta quando estamos às vésperas de celebrar 200 anos de independência nos ajuda a entender por que nos transformamos nessa sociedade marcada pelas diversas formas de violência, institucional, penal, física, doméstica, racial, e porque podemos afirmar que a independência acabou com o colonialismo, mas deixou intacta a colonialidade.
Na sua carta ao monarca, Pero Vaz Caminha deixa claro que os portugueses achavam os tupinambás uns ingênuos por aceitarem suas quinquilharias em troca de cocares belamente ornados de penas coloridas e de aves exóticas, que na Europa tinham alto valor. Sabemos, porém, que para os Tupinambás o que estava ali em jogo não era uma troca comercial -- os chapéus e braceletes portugueses, na verdade, de nada lhes serviam --, mas, sim, de uma troca que selaria uma aliança entre os dois povos. O olhar ávido dos invasores pelas riquezas naturais contrasta com a total falta de interesse pelas pessoas dessa terra verdejante, seus hábitos e costumes.
Na primeira ida à praia, Caminha relata que os portugueses não conseguiam escutar o que os tupinambás falavam por causa do ‘barulho das ondas’. Em outra ocasião, quando o capitão, leia-se Pedro Álvares Cabral, é confrontado nas margens de um rio com um ancião munido de um cetro (que Caminha alega ser um remo) e este inicia uma longa fala, Cabral enfadado simplesmente vira as costas e vai embora.
Não há da parte dos portugueses nenhuma escuta interessada que não seja aquela que possa ser indicativa da existência de ouro. Em uma comunicação por gestos, Caminha deixa claro que ao apontar para o colar de ouro e para terra, o índio não poderia estar querendo dizer outra coisa, senão que havia ouro lá. A outra possibilidade, a de que o ouro e a terra eram deles, tubinambás, eles, os portugueses, simplesmente não aceitariam. Caminha faz questão de salientar que se tratava de um povo primitivo, porque sem religião e nem hierarquia, mais parecido com as bestas, os animais.
Sabemos o que se seguiu depois deste encontro: uma brutal disrupção das populações que habitavam o território, estimadas entre dois e nove milhões de indivíduos. Uma depopulação talvez inédita na história da humanidade. A população indígena foi reduzida drasticamente em menos de um século por causa de epidemias, guerras de apresamento, ações de tomadas de territórios. A tomada da terra pelos colonizadores levou a uma desordem profunda da ordem social comunitária das populações originárias.
Importante lembrarmos que a tomada da terra foi também o marco da introdução de um novo padrão de poder, agora não apenas mediante a força, a violência, mas também mediante a introdução da categoria de raça para classificar a população mundial. A partir desse momento as potências europeias fortalecidas com o domínio colonial dos territórios ultramarinos passam a se arvorar no direito de classificar a população mundial a partir do critério da raça: os negros, os amarelos, os pardos. Todos classificados como Outros, exóticos, diferentes do padrão, o europeu. Um aspecto central desse novo padrão de poder que se inicia com o colonialismo são os epistemicídios, isto é, a desvalorização dos saberes e epistemologias indígenas, e a universalização do modo de produção de conhecimento europeu. A partir do domínio territorial e econômico se constrói a colonialidade, isto é, um padrão de poder de longuíssima duração, que ultrapassa o período colonial, e perdura até os nossos dias. A colonialidade se caracteriza pelo esforço concentrado de apagamento da história, da memória, das línguas, das epistemes, das instituições sociais, das cosmogonias e espiritualidade locais em favor da ideia de uma religião, de uma história e epistemologia únicas. Nesse sentido, as epistemes europeias que como qualquer outra seriam marcadas pela sua origem geográfica, e, portanto, como qualquer outra, provincianas e etnocêntricas, passam a ter validade universal.
Se há 521 anos supostamente as ondas impediram os colonizadores a escutarem o que diziam os tupinambás, hoje essa fala ressoa alta e em bom tom no planalto central:
“Sobrevivemos ao ataque colonial, sobrevivemos ao genocídio, sobrevivemos às doenças. Nosso povo é resiliente, e mesmo nas piores condições, soubemos nos proteger e seguir vivos. Permaneceremos vivos e lutando por nossos direitos, e esperamos que cada vez mais o mundo compreenda que nossas vidas importam, e que os povos indígenas querem e precisam e demandam uma vida plena e em paz!
Há 521 anos tentam apagar a ancestralidade indígena desta terra que chamaram de Brasil. Nós pisamos nesse chão antes de todos. Nós cuidamos desse chão, nós moldamos essas florestas, nós cultuamos a ancestralidade milenar desse território. E por mais que tentem esconder, nunca conseguirão, pois somos muitos, e somos fortes e temos orgulho de nossa história!” (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil)