É possível ensinar filosofia na Educação Básica?
Debora Klippel Fofano
Licenciada e mestre em Filosofia pela UECE; doutora em Filosofia e Sociologia da Educação pela UFC; professora na função de coordenadora da Rede Estadual de Professores do Ceará (SEDUC)
15/04/2024 • Coluna ANPOF
Existe uma discussão salutar e bem tradicional na filosofia que trata da possibilidade de ensinar filosofia ou se se ensina a filosofar. Tematizado por Kant, esse problema retoma tanto uma questão de método como uma questão propriamente filosófica dada sua perspicácia. Hegel dialetizou o problema exatamente propondo sua intersecção. Aliás, a questão é em si socrática, mas cito todo esse contexto apenas como um recurso introdutório porque o tema mereceria uma fala só sobre ele, que certamente já foi explorado por tantas outras pensadoras e pensadores.
No cotidiano escolar essas duas questões tão caras à filosofia parecem de fato se entrelaçar, se retroativam na prática docente de filosofia. Que ao se formar vive o intenso “pequeno drama”: sou filósofo/a? Sou professor/a? Autorizo-me como filósofa? O que faz uma pessoa filósofa ser filósofa? Ensinar é filosofar… ? paralaticamente podemos então inverter a questão kantiana, no seguinte sentido: é o filósofo ou a filósofa aquele que ensina filosofia? ou é o professor, a professora que domina o ensino da filosofia, o filósofo ou a filósofa? Uma provocação já tematizada: a filosofia do ensino do filosofar… são nuances filosóficas e propriamente relevantes ao tema, afinal vemos o cotidiano demonstrar também que mentes brilhantes na filosofia com inabilidades didáticas inviabilizam a possibilidade de se ensinar filosofia ou mesmo o filosofar.
Nessas primeiras palavras se vê a dicotomia que aprofunda o drama entre ensinar e filosofar, afinal quando se pergunta se é possível ensinar filosofia na educação básica, problematizamos duas áreas que em si são universos gigantescos, os quais desafiamos unir, ensinar e filosofar. O drama persiste, sabemos que tem aqueles/as sujeitos que sabem ensinar algo mas não sabem filosofia; que outros sabem filosofia, mas não sabem filosofar e tampouco ensinar; há quem não sabe nem ensinar, nem filosofar e sabem que não sabem; e há ainda aqueles que não sabem que não sabem (o caso mais dramático) e ainda assim querem ensinar algo. “Pai perdoa, eles não sabem o que fazem” (Evangelho - Marx - Zizek). Felizmente temos quem sabe ensinar e filosofar, por isso estamos aqui hoje. Debatendo sobre ensino de filosofia e no próprio filosofar, morando na filosofia.
Evidente que tudo isso parece muito óbvio, entretanto poetas e loucos/as sabem que o mais difícil de ser dito é o óbvio. Algumas professoras ou professores descobrem cedo isso e se tornam mestres no melhor sentido da palavra. Conseguir dizer o simples de maneira evidente, didática e organizada é o primeiro passo para um caminho menos tortuoso no universo do conhecimento em geral e, propriamente, na filosofia. Explicar algo, e de fato ensinar, é um árduo trabalho que acontece na base de muitos estudos, pesquisa e da repetição incansável em sala de aula, até transmutar os sentidos e com isso criar novas possibilidades. Essa tarefa não é fácil, pois exige paciência e perseverança ímpar, que se perde no tempo da geração tiktoker exigente de uma produtividade máxima da superficialidade. Tempo para se dedicar ao mais básico, ao mais simples, óbvio e evidente que parece já estar dado, portanto, não merece atenção. “Tempo para escutar o mato crescer” que não temos mais, mas que é tão precioso para trazer à tona o óbvio e o básico.
Esse processo é necessário na educação básica? Depois de muitos anos de experiência penso que sim. Ensinar o básico não é algo simples e ainda assim é o que mais precisamos nos mais diversos tipos de escola e classes sociais. Sem letramento básico é impossível introduzir o saber filosófico, com o analfabetismo funcional não podemos elaborar o pensamento e isso não diz respeito somente aos e às jovens da periferia uma vez que a geração tiktoker tem dificuldades básicas de leitura e interpretação crítica de textos, mesmo no contexto das redes sociais. Isso quer dizer que professores de filosofia têm de alfabetizar os alunos no sentido mais elementar das questões? Não iremos, tampouco fomos preparados para isso. Mas tampouco é interessante fazer os/as estudantes aprenderem sobre Sócrates, Platão e Aristóteles se isso não é significativo para eles. É preciso implicar a filosofia nas questões básicas da vida para fazer parte do seu universo de sentido. Questões que dialoguem com eles, que de fato os levem a pensar e não somente saber frases de determinados filósofos. Conhecer pensadoras/es, seus contextos e a própria tradição filosófica é relevante se traz a reboque a relação mais profícua com ser e estar no mundo.
Não se consegue fazer filosofia com a barriga vazia, com a mente ansiosa, cercado de eventualidades que não nos deixam refletir sobre o básico, quem dirá além dele. Os problemas que atingem a educação básica são geradores das próprias questões filosóficas, principalmente no que tange a filosofia social, política, ambiental, racial e gênero e o âmbito geral da filosofia prática. A própria filosofia da educação, a ética, a estética e uma gama de fazer filosófico que atravessa o jovem até suas angústias existenciais mais dolorosas, tudo isso pode e deve ser usado para a filosofar na educação básica.
Visto que não existirá um cenário perfeito para filosofarmos “melhor” quando as demandas estiverem resolvidas, assim como na filosofia, a vida não é assim. Construímos a ingênua impressão que quando tivermos mais tempo, mais descansados, superados, tal e tal problema, que vamos conseguir fazer aquilo que aparentemente está em segundo plano. Esse dia nunca chega. Os problemas permanecem, a BNCC, o PNLD, o NEM, as salas de aula superlotadas, a falta de estrutura, o analfabetismo funcional, a gravidez na adolescência, o tráfico de drogas, a desigualdade social, o racismo, a misoginia, os salários defasados de docentes, uma lista infinita de problemas que nos atravessam permanentemente e que nos abatem. Precisamos acolher essas demandas que adoecem a classe docente (inclusive porque os alunos também adoecem) de modo que não podemos passar por cima delas e continuar trabalhando apesar disso.
Trabalhamos por isso, pois precisamos superar um ideal cristalizado de educação pronta e acabada, de filosofia pronta e tradicional. Há outras formas de produzir conhecimento e filosofia, até mesmo a partir desses problemas aqui aviltados. Vale ressaltar que não se trata aqui de sermos produtivos, de fazermos tudo mesmo que o básico nos falte. Ou romantizar o sofrimento para que dele façamos algo. Mas assim como a vida imita a arte, a filosofia se entrevê no próprio fazer com a vida. Não é só depois que o básico está resolvido que vamos filosofar, mas é porque o básico precisa ser garantido que vamos filosofar.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.