EDIÇÃO DE GENES E PROBLEMAS MORAIS NA INTERFACE ENTRE BIOÉTICA E NEUROÉTICA
Darlei DallAgnol
UFSC/CNPq
04/11/2016 • Coluna ANPOF
No XVII Encontro Nacional da ANPOF ministrei um minicurso sobre Princípios bioéticos e edição do genoma humano. A ideia foi discutir as normas básicas pressupostas pela legislação brasileira que regulamenta pesquisas com seres humanos, a saber, os princípios prima facie do respeito pela autonomia, a não-maleficência, a beneficência e a justiça (cf. Resolução 466/2012 do Conselho Nacional Saúde, MS) e algumas de suas aplicações considerando os desenvolvimentos biotecnológicos recentes, especialmente o que pode ser chamado de fertilização tripla" e a possibilidade de edição do genoma humano usando a técnica CRISP/cas9. Formulei o problema principal do curso nos seguintes termos: quais são as melhores normas éticas básicas para justificar políticas genéticas, especialmente para o caso brasileiro? Outras questões relevantes foram as seguintes: o princípio do respeito pela autonomia é suficiente para tornar permissíveis os desenvolvimentos tecnológicos acima mencionados? O princípio da não-maleficência/beneficência é capaz de coibir tais técnicas? Que problemas de justiça distributiva essas técnicas suscitam, por exemplo, elas vão agravar a desigualdade social? A principal razão para oferecer o minicurso foi não somente a importância intrínseca ao tema, mas também a necessidade de repensar a legislação brasileira, por exemplo, a chamada Lei de Biossegurança, que proíbe no seu famoso Art. 5º proíbe a aplicação de engenharia genética em células germinais e embriões humanos.
Neste breve ensaio, vou analisar um uso possível da edição do genoma que está relacionado com estratégias de intervenção na constituição do cérebro humano, por exemplo, para prevenir e/ou curar certas condições psiquiátricas. Antes de fazê-lo, gostaria de informar que o Professor Marcelo de Araújo (UFRJ/UERJ) e eu estamos participando de um consórcio global de pesquisa que analisa questões éticas suscitadas pelo desenvolvimento das neurociências chamado Our Brain, Ourselves, Our World (A Global Consortium on Neuroscience, Ethics and Society), liderado pela University of Oxford, e formado por mais de cinquenta pesquisadores do mundo todo, de diferentes áreas, incluindo biólogos, psicólogos, psiquiatras, juristas, filósofos etc. Minha função e interesse nesse grupo resulta de minhas pesquisas em bioética e na preocupação recente de suas intersecções com a neurociência. O grupo reuniu-se entre os dias 29/06 e 01/07 de 2016 para definir as principais linhas de atuação. O encontro aconteceu em Ashridge, sede da Wellcome Trust, e foi formado por 5 painéis temáticos todos tratados a partir de casos concretos numa perspectiva global. Foram eles: (i) a ética da neurociência; (ii) a neurociência da ética; (iii) neurociência e desenvolvimento infantil; (iv) neurociência e saúde mental global; e (v) neurociência e envelhecimento. Participei do primeiro grupo, mas parece claro que todos esses tópicos merecem muita pesquisa e discussão filosófico-científica para incrementar o bem-estar global. Até agora, uma ação concreta do grupo foi responder a um chamado do NIH (National Institutes of Health) relacionado com o programa americano conhecido como The BRAIN Initiative® que investirá U$4,5 bilhões até 2025 para mapear cada neurônio e cada circuito neural humano. Aqui, quero apresentar alguns problemas relacionados com o quarto item a título de ilustração e que exibem a interconexão entre princípios bioéticos e problemas neuroéticos. Interessa-me, particularmente, os problemas éticos suscitados pelo uso de biomarcadores para certas condições psiquiátricas. Não serão tratados outros possíveis usos, por exemplo, industriais ou até mesmo militares de certos estudos sobre a interface cérebro/máquina para a construção de exoesqueletos ou robôs matadores controlados pela mente humana.
Desde os anos 1990, declarada a década do cérebro, muito foi descoberto sobre a constituição e o funcionamento desse complexíssimo órgão humano. Além de coordenar todo o nosso corpo, o cérebro é o centro da nossa vida mental e do próprio senso de identidade pessoal. Algumas descobertas têm tido impacto profundo não apenas nas ciências, mas também na própria filosofia. Por exemplo, alguns achados têm implicações na ética enquanto reflexão filosófica sobre a moral, em especial, as que mostram que algumas decisões que imaginamos estar tomando voluntariamente são, na verdade, feitas pelo nosso cérebro milionésimos de segundos antes. Elas são chamadas, talvez inapropriadamente, ações inconscientes. Esse fato levanta várias questões sobre até que ponto temos livre arbítrio e há uma discussão enorme sobre este ponto que não tenho condições de reproduzir por razões de espaço. Penso, todavia, que há muita confusão conceitual ainda, mas não pretendo tratar dessas questões aqui.
Recentemente, o uso de neuroimagens (fMRI, Imagens por Ressonância Magnética Funcional) e o incremento na nossa habilidade de manipular o cérebro tem suscitado uma série de outras questões éticas. Por exemplo, o uso de próteses neurais e outros artefatos aponta para questões relacionadas com o princípio do respeito pela autonomia em populações vulneráveis como aquela formada por diferentes distúrbios mentais. Como continuar garantindo que uma pessoa tenha direito sobre seu próprio corpo e outras liberdades? É o consentimento informado apropriado? Em que casos? Será ele suficiente? Qual é o papel dos Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPs) e do CONEP quando existe até mesmo a possibilidade de manipulação da identidade pessoal? Não temos respostas ainda para essas questões, mas urge formulá-las para buscar uma melhor compreensão, tratamento e regulação.
Vou mencionar agora outros exemplos. Primeiro, a neuroimagem já está sendo usada para fazer retratos de atividades conscientes. Essa neurotecnologia levanta questões relacionadas com possíveis desordens na consciência além de problemas de decisão de final de vida. Segundo, talvez estejamos próximos de ler pensamentos e saber, por exemplo, se uma pessoa está mentindo. Então, a questão que surge é: como fica a privacidade e a integridade mental nesses casos? Terceiro, as neuroimagens podem ser usadas para prever certos comportamentos, então será lícito manter por maior tempo alguém preso se elas mostrarem uma atividade baixa no córtex anterior cingulado? Dado que estamos tratando de procedimentos experimentais com seres humanos, parece razoável supor que os princípios bioéticos devam ser usados para discutir a eticidade dessas pesquisas. Todavia, os tradicionais referenciais bioéticos podem não ser suficientes para lidar com todos os problemas morais. Surge, ineditamente, a seguinte questão ética: que outras normas básicas precisamos para lidar com a neurociência e a neurotecnologia? Essas interrogações mostram, enfim, a clara interface entre a bioética e os novos problemas morais colocados pela neuroética.
Vou aprofundar agora um problema específico relacionado com a edição de genes nas interfaces entre bioética e neuroética. A neurogenética pode ser definida como uma disciplina que trata da interseção entre ética, neurociência e genômica. Ora, a descoberta de técnicas tais como CRISP/Cas9 para editar o genoma humano pode abrir novas formas de prevenir distúrbios cerebrais, mas põe questões não apenas sobre usos negativos para fins terapêuticos que estejam relacionados com disfunções que causem desde formas severas de depressão até esquizofrenia, mas também para possíveis melhoramentos das atividades cerebrais. Temos avanços significativos em algumas áreas de terapia gênica, por exemplo, nas distrofias musculares e, certamente, outras logo aparecerão para doenças como Alzheimer etc. Então, é razoável pensar que elas também possam trazer benefícios. Porém, diante do abuso que está ocorrendo hoje no uso de farmacêuticos e de outras formas de estimular o cérebro, temos que nos perguntar se os malefícios não superarão os possíveis ganhos. Consideremos, por exemplo, a depressão. Estima-se que, aproximadamente, 6% da população mundial sofra com essa condição. Mas nem sempre a solução é mais intervenção direta no cérebro de uma forma ou outra. Temos que buscar na neurociência uma aliada para ajudar a explicar a depressão, mas também diferentes formas de lidar com ela que envolvem aspectos sociais e culturais. O uso de tecnologias sofisticadas (Deed Brain Stimulation etc.) podem ter efeitos colaterais ainda desconhecidos. Nesse sentido, é necessária uma avaliação ética antes de permitir a intervenção. Mas também é importante considerar os elementos ambientais e sociais envolvidos e buscar uma solução que não pressuponha o geneticismo, ou seja, uma perspectiva reducionista de explicação determinista a partir dos genes que seja ela própria anticientífica e não possua sustentação filosófica.
Por isso, além de questões relacionadas com eficácia e segurança, essas técnicas trazem várias interrogações sociais, ou seja, estão relacionadas com princípios de justiça. Por exemplo, há um claro risco de que os desenvolvimentos na genética neuropsiquiátrica irão aumentar a diferença entre ricos e pobres em determinados Estados, entre países do hemisfério norte e do sul. Além disso, a perspectiva de possível exploração comercial do Big Data obtida a partir dos biomarcadores nessas áreas é preocupante. Ela poderá ser feita não apenas por empresas de saúde, mas também por todas as outras que poderão avaliar seus futuros funcionários de forma parcial. Os tradicionais modos de estigmatizar pessoas portadoras de distúrbios mentais podem também reaparecer sob roupagem sofisticada, por exemplo, em decisões reprodutivas à luz de informação dos biomarcadores. Os avanços nessas áreas são cada vez mais rápidos e as reflexões deveriam poder acompanhá-las para possibilitar uma regulação eficiente. Por exemplo, a produção de pequenos cérebros a partir do cultivo de células-tronco chamados organóides pode trazer vários benefícios, mas, ao mesmo tempo, coloca questões sobre os limites dos tipos de organóides que se pode editar usando técnicas como o CRISP/cas9. A própria ética enquanto atividade teórico-reflexiva precisa evoluir para dar conta desses problemas. Confesso aqui que não tenho clareza sobre o referencial ético necessário para dar conta dessas questões. No minicurso, usei a publicação recente do Nuffield Council of Bioethics, do Reino Unido, chamado Genoma editing: na ethical review) disponível em: http://nuffieldbioethics.org/project/genome-editing/. Recomendo a todas as pessoas a leitura.
Um grupo multidisciplinar e, ao mesmo tempo, internacionalizado como o acima referido (Our Brain, Ourselves, Our World) pode produzir avanços significativos para a neuroética. Certamente, o consórcio enfrentará os desafios éticos da neurociência a partir de diferentes perspectivas teóricas, mas terá que ser sensível aos mais variados contextos sociais e culturais. Somente dessa maneira, talvez, a ética e a neurociência poderão juntas contribuir para compreender melhor a moralidade humana e para efetivamente melhorar o bem-estar global.
No Brasil, é necessário estarmos mais atentos a esses desenvolvimentos. Infelizmente, temos que enfrentar nessa área uma epidemia de microcefalia causada pelo vírus Zica, mas estamos perdendo terreno tanto cientifica quanto socialmente. É inadmissível o que o projeto político atual está fazendo com a ciência no nosso país. A perspectiva bioética, a verdadeira ponte para o futuro, requer usarmos a biotecnologia de forma ética. Por isso, é necessário repensarmos a nossa legislação tanto para combater formas de microcefalia severa -talvez em analogia com a solução dada para a anencefalia- quanto para permitir desenvolvimentos que a engenharia genética em células germinativas humanas possibilita, em especial, para evitar doenças genéticas. É necessário, então, criamos condições para o desenvolvimento da neurociência e da biotecnologia de forma ética, ou seja, para o benefício humano. Por conseguinte, temos que repensar a nossa legislação que é restritiva e não dá conta de desenvolvimentos científicos e tecnológicos que contribuem para o incremento do nosso bem-estar.
04 de Novembro de 2016.