Educação e extrema direita: notas sobre um projeto permanente de destruição

Thiago David Stadler

Professor Associado A do Colegiado de Filosofia da UNESPAR; Professor Permanente do PROF-FILO/UNESPAR

08/05/2025 • Coluna ANPOF

Em colaboração com Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil)
GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da Anpof

Neste breve texto de opinião, proponho algumas reflexões sobre a educação diante da ascensão da extrema direita. Antecipadamente, reconheço que vários flancos ficarão descobertos, dada a natureza introdutória do texto. Por isso, peço gentilmente que leitoras e leitores considerem três aspectos fundamentais que, embora não desenvolvidos neste texto, são importantes para a compreensão do exposto: (i) o fascismo constitui uma resposta histórica a crises agudas do sistema capitalista; (ii) as extremas direitas tendem a emergir na ausência de um projeto histórico popular e enraizado à esquerda; (iii) o programa educacional brasileiro apresenta problemas graves e persistentes, consolidando-se como um ícone das desigualdades e dos privilégios das classes dominantes. Feita essa ressalva, parto de uma constatação amplamente reconhecida: a escola, a universidade e demais espaços formativos constituem territórios estratégicos nas disputas pelo poder. Na última década, em um movimento de resgate de ideais sombrios que marcam a história de violência e repressão no Brasil, grupos de extrema direita vêm alçando a educação escolar e universitária à condição de “inimiga interna”. As instituições públicas de ensino tornaram-se alvo de ataques sistemáticos e tentativas de captura ideológica, convertendo-se em uma espécie de bodes expiatórios de uma crise mais ampla. A retórica e as práticas políticas e econômicas neoliberais – compreendidas aqui como a antessala do fascismo –, em articulação com o moralismo dos movimentos de extrema direita, contribuíram para a construção da imagem de um sistema educacional falido, ineficaz e supostamente aparelhado por “doutrinadores marxistas”.

É inegável que o programa educacional brasileiro constitui um conjunto monumental de falhas, no qual não se consolidou um sistema de qualidade voltado à maioria da classe trabalhadora. Contudo, o discurso supostamente crítico da qualidade educacional, promovido pela extrema direita, não tem como horizonte a melhoria da educação pública, mas sim a sua destruição. Caso almejasse aprimorá-la, esse discurso proporia o desenvolvimento de um projeto educacional capaz de enfrentar a condição de dependência econômica, a superexploração do trabalho assalariado, a instabilidade da renda da classe trabalhadora etc. No entanto, o projeto da extrema direita mobiliza um anti-intelectualismo virulento, que não apenas desqualifica os profissionais da educação, mas também nega a legitimidade da ciência e das humanidades. Além disso, as supostas críticas à educação brasileira formuladas pela extrema direita erguem-se sobre uma forma de irracionalismo autorreferente, que glorifica a experiência individual como critério exclusivo de verdade – “se não aconteceu comigo, é porque não aconteceu”. Em última instância, trata-se de uma negação ativa da teoria, acompanhada pela exaltação de uma prática esvaziada de densidade reflexiva e submetida a valores mercadológicos. Essa prática se satisfaz com um “ler mais ou menos”, “escrever mais ou menos”, “pensar mais ou menos”, “contar mais ou menos”: uma educação limitada e meia boca – afinal, dirigida à classe trabalhadora.

Se o cenário é, em linhas gerais, esse, é preciso reconhecer que a extrema direita não manifesta apenas desprezo em relação ao campo educacional – ela impõe um projeto de destruição das instituições de ensino. É nesse contexto que se insere o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), instituído em 2019 e revogado em 2023, criado sob a justificativa de promover a disciplina e melhorar a gestão escolar em áreas vulneráveis. A proposta reatualiza um anseio histórico das elites brasileiras: tratar a educação como uma questão de segurança pública. Ao transferir para os militares o comando administrativo e disciplinar das escolas, relegando aos docentes a função didático-pedagógica, consagra-se uma lógica hierárquica que desconsidera a complexidade do cotidiano escolar e compromete os princípios da autonomia e da participação docente. Em vez de enfrentar os problemas concretos da educação pública, como a precariedade da infraestrutura, a sobrecarga de trabalho, o esgotamento dos concursos e os cortes crônicos de financiamento, opta-se por uma solução rudimentar, mais voltada ao controle do que ao efetivo processo de aprendizagem.

Essa mesma lógica sustenta o movimento “Escola Sem Partido”, criado em 2004, e amplamente impulsionado pela extrema direita como instrumento de controle ideológico sobre docentes. Se o modelo cívico-militar mira os estudantes, o “Escola Sem Partido” volta-se contra os docentes, instaurando um ambiente de vigilância e deslegitimação da prática pedagógica nas salas de aula. Nesse imaginário, a escola pública deixa de ser concebida como espaço de formação coletiva para ser reduzida a uma extensão da autoridade familiar – esta, por sua vez, reforçada pela ideia de que os pais deveriam exercer maior influência sobre o currículo e o conteúdo escolar do que os próprios docentes. Importa frisar que essa ofensiva não se limita ao plano retórico. O que se tem presenciado é um processo concreto de ataque aos trabalhadores da educação, de desmonte das licenciaturas, de desestruturação dos programas de formação continuada e de imposição de limites severos ao investimento público no setor. A legislação educacional tem sido progressivamente orientada por critérios exclusivamente quantitativos; direitos trabalhistas são substituídos por bonificações esporádicas; as especificidades formativas são esvaziadas; o piso salarial da categoria é sistematicamente contestado; e as universidades públicas vêm sendo enfraquecidas pela proliferação de instituições privadas sustentadas por recursos públicos. Muitas dessas medidas não são exclusividade da extrema direita. Como indicado anteriormente, o programa educacional brasileiro apresenta problemas históricos, razão pela qual tais medidas também foram mantidas por governos de orientação neoliberal que se apresentam como progressistas. Diante dessa fragilidade histórica da educação no Brasil, torna-se fácil perpetuar seu sucateamento por meio da retração de investimentos, do desaparecimento de concursos públicos e da proliferação de propostas baseadas no voluntarismo, na filantropia e na mitologia dos “notórios saberes”. Tudo isso é acompanhado por discursos que evocam a “modernização”, “inovação tecnológica” e “liberdade educacional”, os quais, na prática, ocultam o permanente desmonte do sistema educacional brasileiro.

Os ataques a Paulo Freire, patrono da educação brasileira, possuem um valor simbólico crucial nesse processo. Freire representa aquilo que a extrema direita mais teme: uma concepção de educação como prática de liberdade, voltada aos oprimidos, fundada no diálogo e na problematização do mundo. Ao desqualificar sua figura e sua obra, tenta-se apagar a memória das lutas por uma escola popular. No entanto, é fundamental reconhecer que o programa educacional brasileiro já estava em estado de ruína antes da ascensão da extrema direita. Basta compreender que jamais se concretizou, de fato, um projeto de Universidade Necessária de Darcy Ribeiro; tampouco se materializou a defesa do desenvolvimento autônomo nacional, proposta por Álvaro Vieira Pinto, ou a implementação duradoura dos CIEPs de Brizola.

O fato é que, ao longo das duas primeiras décadas e meia do século XXI, persistiu a ausência de um projeto histórico de educação articulado pela esquerda, mesmo após mais de dezesseis anos no comando do executivo nacional. Entre outros fatores já mencionados, essa lacuna também contribuiu para que a extrema direita ocupasse o vácuo com uma ofensiva cultural regressiva. Ofensiva que financia uma rede de pseudointelectuais, charlatões e revisionistas históricos, que compreenderam com precisão o papel dos meios de comunicação e divulgação na disputa pelas consciências. Um exemplo eloquente é a empresa “Brasil Paralelo”, fundada em 2016, que se dedica a reescrever a história nacional e internacional por meio de falsificações grotescas, negando a ditadura militar, relativizando o colonialismo e a escravidão, exaltando o capitalismo como destino inevitável da humanidade – tudo sob o slogan “apoie uma mídia independente que não aceita um centavo de dinheiro público”. O que se observa é uma inversão semântica deliberada: categorias historicamente elaboradoras pelo pensamento crítico de esquerda, bem como práticas de combate construídas ao longo das lutas dos movimentos populares, são apropriadas por esses grupos reacionários. Um dos resultados é a proliferação de figuras cínicas e criminosas que propagam a ideia de que as extremas direitas seriam “antissistema”, enquanto as esquerdas liberais seriam defensoras da ordem vigente. Apesar da veracidade da segunda afirmação – de que as esquerdas liberais defendem o sistema capitalista sem apresentar nenhum horizonte de disputa socialista –, o “antissistema” das extremas direitas permanece apenas no campo retórico e se alimenta justamente do abandono, por parte das esquerdas liberais, da crítica radical ao capitalismo.

O que pretendo afirmar, enfim, é que a crise da educação brasileira frente à ascensão da extrema direita é expressão das contradições de um país que nunca erradicou o analfabetismo, jamais universalizou o acesso e a permanência digna à escola e tampouco estruturou um sistema universitário popular. Diante da sobrecarga física e moral imposta à classe trabalhadora – e da eficácia comunicacional dos grupos fascistizantes, que oferecem refúgios simplificadores e messiânicos –, a luta pela centralidade da educação como projeto de transformação social torna-se ainda mais complexa. É precisamente por isso que o trabalho de docentes não pode se restringir à resistência. Os trabalhadores da educação precisam disputar ativamente o presente e o futuro, pois quando escolas, universidades, coletivos, sindicatos e organizações populares são criminalizados e rebaixados, o horizonte que se avizinha é o do fascismo.


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