EM DEFESA DA FILOSOFIA COMO COMPONENTE CURRICULAR OBRIGATÓRIO NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO
Fábio Gai Pereira
Doutorando em filosofia/UFRGSProfessor na rede municipal de Porto Alegre/RS e no Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho
02/02/2017 • Coluna ANPOF
Em que tipo de sociedade você deseja viver? Você deseja viver em uma sociedade organizada com a menor carga tributária possível, com um Estado que possua o menor número de funções possível, pois na sua concepção a sociedade civil precisa ter a liberdade para organizar-se da maneira como lhe convier, pois precisa ser respeitada em sua autonomia? Ou você tende acreditar que, em um ambiente de liberdade máxima de mercado, os que possuem menos dinheiro tendem a ter menos liberdade e, assim, o Estado precisa ter um papel mais amplo, arrecadando, via impostos, os recursos financeiros necessários para garantir serviços básicos como saúde e educação para aqueles que, inclusive, não poderiam pagar por esses serviços? Qual é mesmo o papel dos impostos? Qual deve mesmo ser a função do Estado? Você tem clareza dos seus argumentos em um debate como esse? Não gostaria de submeter os seus argumentos a um exame mais profundo? Digamos que essa seja, em linhas gerais, a nossa questão 1.
Em que tipo de sociedade você deseja viver? Em várias cidades brasileiras bem como em outras cidades de outros países foram registradas catástrofes naturais que causaram desespero e dor em muitas pessoas. Comerciantes utilizando-se da situação exploraram a lei de oferta e procura e aumentaram os preços de lonas, bombonas de água, hospedagem em hotéis e demais serviços. Órgãos de defesa do consumidor receberam denúncias a respeito disso. Ora, esses comerciantes sendo donos dos seus próprios bens não poderiam comercializá-los da maneira como lhes aprouvessem, pois vivemos em uma democracia e podemos agir livremente sobre os bens que nos pertencem? Ou isso se configura em abuso e o Estado deveria intervir em relações de comércio de natureza abusiva, dado que houve uma situação de fragilidade das vítimas? Afinal, o Estado deve regular relações comerciais? Não? Se deve, até que ponto deve fazê-lo? Você tem clareza dos seus argumentos em um debate como esse? Não gostaria de submeter os seus argumentos a um exame mais profundo? Digamos que essa seja, em linhas gerais, a nossa questão 2.
Em que tipo de sociedade você deseja viver? Ouvimos discursos de vários tipos. Somos bombardeados por argumentos que visam defender as mais diferentes ideias... Ideias sobre política, sobre comprar coisas, sobre ser isso ou aquilo, sobre quem somos, quem deveríamos ser... Afinal, seria bom para a nossa sociedade dedicar-se a investigar o que é desejável em um argumento honesto e promissor? Estudar estratégias de manipulação pelo discurso para prevenir-se dessa atitude e estudar estratégias de elaboração de discursos consistentes e promissores é não ou não é desejável para formação daqueles que integram a vida coletiva? Digamos que essa seja, em linhas gerais, a nossa questão 3.
Em que tipo de sociedade você deseja viver? Vivemos em uma era onde há muita informação disponível. Recebemos notícias reportando perspectivas completamente diferentes uma das outras sobre um mesmo fato e ficamos com um leque amplo de informações à disposição. Como posicionar-se diante de tantas informações? Como estabelecer conhecimento em meio a tantas opiniões? Não é relevante ao menos ter clareza do tipo de desafio a que somos lançados se não nos importarmos com a noção de justificação? Você prefere viver em uma sociedade que busca e repensa continuamente suas estratégias para definir o que é verdadeiro e o que é falso diante de tantos discursos ou prefere viver em uma sociedade que não se preocupa em viabilizar condições para que seus estudantes desenvolvam-se quanto a isso? Digamos que essa seja, em linhas gerais, a nossa questão 4.
Em que tipo de sociedade você deseja viver? Em uma sociedade que promove condições de responder as questões 1, 2, 3 e 4 ou em uma sociedade que não se preocupa em incluir na formação dos seus jovens as condições para acolher e seguir adiante nos avanços dos debates pertinentes às questões 1, 2, 3 e 4? Em que outros espaços da educação básica os nossos estudantes encontram um ambiente onde possam aprender a avaliar as suas próprias ideias sobre essas questões que levantamos nesse documento, sejam incentivados a lançá-las em debate, a aprofundar seus pressupostos e avaliar suas consequências com os instrumentos de análise conceitual pertinentes e à luz de uma compreensão mais ampla sobre o conjunto das linhas argumentativas que têm se mostrado mais promissoras ao longo da história dessas discussões?
A questão 1 trata da discussão sobre o papel do Estado e da forma como uma sociedade escolhe relacionar-se com a noção de liberdade e de desigualdade. Essa questão situa-se uma área da filosofia chamada filosofia política.
A questão 2 trata sobre a noção de justiça, sobre o que podemos tomar como um ação justa ou injusta com relação ao próximo. Essa questão situa-se em uma área da filosofia chamada ética.
A questão 3 trata das condições que um discurso deve apresentar para ser tomado como consistente e como relevante para o avanço em um debate. Essa questão situa-se em uma área da filosofia chamada lógica.
A questão 4 trata do desafio de distinguir as crenças que podem ser tomadas como uma mera opinião das crenças que podem ser tomadas como conhecimento. Para tanto, é preciso esclarecer a noção de justificação. Essa questão situa-se em uma área da filosofia chamada epistemologia.
Essas não são as únicas áreas da filosofia, mas essas questões pertinentes a essas áreas nos servem aqui para indicar o quanto elas nos afetam e nos ajudam a chamar a atenção para o fato de que as respostas que damos a elas trazem consequências importantes para nossas vidas. A filosofia possui muitas outras áreas e também procura responder a questões que não afetam o público em geral. Da mesma forma a biologia, a física, a química e muitas outras disciplinas trabalham com desafios de níveis de complexidade diferenciados, muitos dos quais interessarão apenas a especialistas. Contudo, nessas disciplinas também há conteúdos importantes para a formação básica, pois oportunizam uma vida em sociedade mais consciente e habilitada para lidar com desafios próprios da vida humana. Em filosofia, como vimos, há também um esforço para responder a questões que afetam a jornada de todos que partilham uma vida coletiva, não sendo, portanto, apenas uma área de interesse de especialistas.
Acreditamos que as disciplinas de filosofia e de sociologia são o local próprio para os debates das questões 1, 2, 3 e 4 e muitas outras de natureza semelhante. E porque de acordo com a resposta dada a essas questões definiremos o projeto de sociedade em que iremos viver, e porque a definição da sociedade em que vivemos nos impacta a todos e requer a participação qualificada de todos, defendemos a permanência da filosofia e da sociologia como componentes curriculares obrigatórios da grade curricular do ensino médio brasileiro. Participar dos debates que projetam definições para as nossas vidas, seja no âmbito coletivo ou individual, é uma opção nossa. Assim como é opção nossa ignorar ou não o conhecimento dos argumentos mais amplamente difundidos nos debates da história da filosofia e da sociologia. É opção nossa ignorar as ideias profundamente discutidas. É opção nossa abrir ou não canais de debate para o surgimento de novas alternativas. Contudo, de qualquer forma, será opção nossa a sociedade que estamos construindo. E uma sociedade que não educa para o debate estabelece um projeto de vida coletiva que não promove a solidariedade, pois sequer pensa sobre isso, e não consegue projetar soluções para os seus problemas porque, afinal, sequer pensa sobre isso. Em que tipo de sociedade você deseja viver?
ANPOF (biênio 2017-2018)
02 de Fevereiro de 2017