Emma Goldman e as forças de segurança "pública"

Mariana Lins Costa

Professora de Filosofia (UECE)

19/09/2023 • Coluna ANPOF

Porque é bem provável que mais importante do que levar a consciência de classe às fábricas, é levá-la aos quartéis

“Quando você for convidado
Pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos

De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos

[...] de tão pobres

[...]

Pense no Haiti.”

(Caetano Veloso e Gilberto Gil)[1]

Ante a nossa situação nacional de guerra civil não declarada, a compreensão estratégica apresentada pela anarquista e militante política Emma Goldman no diz respeito ao soldado estadunidense no contexto imediatamente anterior à Primeira Grande Guerra ainda parece bastante inovadora. De modo que talvez não seja um erro estendê-la ao nosso tempo e país na tentativa de iluminar possíveis estratégias de luta no que tange à espinhosa “questão militar” que, no nosso caso, como bem sabemos, envolve a polícia. Pois segundo constata a anarquista: “Apesar de todas as consequências negativas que o patriotismo traz para o homem comum elas são absolutamente nulas quando comparadas ao ultraje e à injúria que o patriotismo inflige sobre o soldado” [2]. 

Como não é o objetivo aqui apresentar a compreensão de Goldman do patriotismo como um fenômeno psicológico deliberadamente espraiado nas massas para os fins do militarismo que é o baluarte do capitalismo, teremos de nos contentar em vislumbrar por que, para ela, os trabalhadores cuja força de trabalho é supostamente utilizada para proteger a nação de ameaças externas e de convulsões internas seriam as vítimas mais ultrajadas do patriotismo. 

Em primeiro lugar, a anarquista chama a atenção para o fato de que o contingente dos soldados é formado por membros das classes menos favorecidas, como também é o caso da “classe” dos criminosos comuns (ela inclusive atenta para o fenômeno hoje bastante ordinário de soldados que se aventuram nos mais variados crimes, enquanto criminosos tornam-se soldados). Ou seja: não é o gosto pessoal que leva à escolha pelo ofício de soldado; se assim fosse encontraríamos entre eles, os filhos das elites – o que não acontece. 

Daí que a guerra seja desvelada por ela como autoaniquilamento induzido nas classes dos trabalhadores para que o lucro e acumulação do capital possam se manter em crescimento ininterrupto. Numa imagem: soldados combatendo internamente “criminosos” (caso, por exemplo, dos nossos PMs) ou grevistas (caso do exército estadunidense da época de Goldman) como nada mais do que o autoaniquilamento entre compatriotas do mesmo estrato socioeconômico; soldados combatendo soldados de outros países como nada mais do que trabalhadores nascidos em diferentes localidades se matando entre si. 

Como os indivíduos que chegam ao exército são, via de regra, oriundos da “ralé social”, isso justifica que sejam “tratados como gado” pelos seus superiores e inclusive por parte da pequena burguesia que deles depende (lembremos que se trata de uma classe excluída do direito constitucional de fazer greves). A origem social também justifica que a esmagadora maioria desses trabalhadores das forças de segurança (as bases) recebam um ordenado miserável ante as funções de altíssima periculosidade do seu ofício, que envolvem tanto o risco físico, quanto psicológico (basta imaginarmos, por exemplo, as condições de trabalho dos agentes penitenciários). É que apesar de miseráveis, os ordenados e benefícios do trabalhador das classes armadas, um funcionário público de tipo específico, apresentam-se como relativamente altos e vantajosos quando comparados aos outros salários referentes aos demais ofícios disponíveis e circunscritos às classes baixas. 

Essa compreensão da condição de exploração das bases das classes armadas não impede a anarquista de constatar que as atribuições diárias da vida militar são fonte de profunda perversão do caráter; e isso até o ponto de tornar o militar em questão inapto para qualquer função verdadeiramente construtiva para a sociedade. Ao adquirir o “hábito da ociosidade e o gosto pela emoção e aventura”, escreve ela, “nenhuma vida pacífica jamais poderá mais contentá-lo”. Na medida em que a “função” do exército “é matar” só pode viver “por meio do assassinato”, sendo “inevitável que busque um inimigo ou que crie um artificialmente”. Assim, em face de tais ensinamentos, parece uma estratégia no mínimo questionável que no nosso tempo e país, a esquerda progressista, quando não conivente com a matança – caso de autoridades políticas, como o ex-governador da Bahia Rui Costa –, venha tomado como prova de humanismo acusar as bases dos policiais e militares indiscriminadamente de fascistas, enquanto exige-se delas que prendam... os fascistas. Independentemente de onde esteja localizado o lado certo da história, parece uma atitude algo delirante do ponto de vista do princípio da realidade exigir de fascistas que prendam a si mesmos e aos seus em respeito à lei.

Um outro ponto destacado por Goldman é que a “formação” hierarquizante recebida por um soldado é, em si, absolutamente incompatível com os princípios de igualdade e liberdade que configuram o cerne da cidadania democrática. Ela traz luz ao fato de que o objetivo da formação militar é o de transformar um ser pensante numa máquina de obediência e lealdade, num “autômato”, isto é, num ser cuja autonomia e iniciativa devem estar completamente destruídas para que assim possa ser comandado pelos seus superiores com uma máquina de morte na mão. E eis aí o seu lamento de que parte significativa da juventude de “uma República livre” desperdice os seus dias de primavera “batendo continência para todo e qualquer tenente insignificante”, isso quando não matando e encarcerando, como é o nosso caso de guerra interna, a outra parcela da juventude oriunda do mesmo estrato econômico e contexto social.

Dada a sua condição de anarquista, Goldman obviamente negava que qualquer função positiva pudesse ser atribuída ao braço armado do Estado, como por exemplo, a de assegurar a ordem ou garantir o exercício e bom funcionamento das instituições por meio repressão e punição ante a quebra dos contratos legais. Para ela, preservar as instituições burguesas é em última instância preservar as instituições que protegem a propriedade privada do pequeno número de “privilegiados” que roubam e saqueiam as massas – e que, justamente, por conta disso, precisam e se valem do militarismo. 

A parte mais interessante da perspectiva apresentada por ela é que, de um lado, ela reconhece a legitimidade da oposição dos trabalhadores conscientes da sua condição de exploração contra os representantes diretos das forças repressivas do Estado. Nas suas palavras: “O trabalhador americano tem sofrido tanto nas mãos do soldado estadual e federal, que ele está mais do que justificado no seu desgosto e oposição para com o parasita uniformizado.” Contudo, de outro lado, ela também compreende que a simples denúncia dos abusos inerentes a um poder cuja função é matar não é suficiente. Traduzindo para o nosso tempo: ela compreende que clamores públicos contra chacinas, por exemplo, são importantes, mas nem de longe são capazes de evitá-las. E dá a receita de uma estratégia possivelmente mais eficaz do que a mera denúncia e oposição verbal contra as classes trabalhadoras que portam as armas:

O que precisamos é de uma propaganda educativa para o soldado: literatura antipatriótica capaz de esclarecê-lo sobre os horrores reais do seu ofício e de despertar a sua consciência para a verdadeira relação que ele possui com o homem que agride e a cujo trabalho deve a própria existência. Esse tipo de conscientização é o que as autoridades mais temem. 

É interessante observar que Goldman coloca como central para o fortalecimento e mesmo continuidade do espírito internacionalista, a conscientização das classes armadas. A militância para os fins dessa conscientização é inclusive vista por ela como resultante do sentimento de solidariedade entre os explorados do mundo que deve ser estendido (em vez de antagonizado) àqueles que são as vítimas mais iludidas do patriotismo. Essa solidariedade, segundo postula, é o único afeto capaz de despertar “a consciência dos soldados”, porque inclusive já o fez. Caso dos soldados parisienses, durante a Comuna de 1871, que desobedecerem às ordens dos seus superiores de atirar na multidão insurgente, e desertaram juntando-se a ela; caso dos marinheiros do encouraçado Potemkin durante a revolução russa de 1905. 

Ao se levar à sério essa compreensão oferecida por Goldman, parece ser o caso de reconsiderar o modo da esquerda se dirigir às bases das classes armadas; uma reconsideração que se assumida na prática, como ela sabia muito bem, não é isenta de riscos. Não por acaso um soldado foi condenado por “crime semelhante à traição” simplesmente por assistir uma de suas audiências públicas e depois apertar a sua mão. Não por acaso ela foi deportada dos EUA, após ser presa um sem-número de vezes, ao chegar a conclusões como essas. Não por acaso, no nosso país, quando um trabalhador das classes armadas se declara publicamente de esquerda torna-se alvo da perseguição institucional e mesmo da violência direta por parte dos seus colegas, que assomados ao escárnio moral que, em geral, lhe é reservado pela esquerda humanista torna a sua situação ainda mais grave. 

Aprendamos, portanto, com “a mulher mais perigosa da América”, segundo o primeiro diretor do FBI, a seguinte lição: de que por ser “bem provável que mais importante do que levar a verdade às fábricas, é levá-la aos quartéis”, “aqueles que lutam com sinceridade pela reconstrução da vida social podem muito bem arcar com o risco que envolve enfrentar tudo isso”. 


[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4-t73SGpozw

[2] Todas as citações de Goldman no presente texto foram retiradas do seu panfleto “Patriotismo, uma ameaça à liberdade” (1910) contido na minha tradução da coletânea, ainda no prelo, intitulada O indivíduo, a sociedade e o Estado para a editora Hedra, com organização de Plínio Augusto Coêlho. Inclusive, este texto trata-se de um excerto da minha introdução, ainda inédita, para essa mesma coletânea.
 

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