Ensino de Filosofia em risco: considerações conjunturais
Christian Lindberg
Professor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFS e ao Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UFPE).
01/10/2021 • Coluna ANPOF
Sabe-se que a democracia colaborou para que a Grécia desenvolvesse sua Filosofia. De igual modo, costuma-se afirmar que nosso País é, do ponto de vista cultural, herdeiro da tradição ocidental, tradição que recorre aos antigos gregos em muitos aspectos, muito embora a constituição do povo brasileiro tenha sua raiz nos povos africanos, ameríndios e lusitano.
Começo meu texto recorrendo a esse aspecto, sob o risco de ser reducionista, para abordar algo que tem posto o Ensino de Filosofia em risco, a escalada autoritária que tem sido desenvolvida por parte do Governo Federal.
Perto de concluir o terceiro ano do mandato presidencial, nota-se que o Jair Bolsonaro (sem partido) e seus ministros/as sentem certo prazer em pronunciar palavras com caráter autoritário, como também elaborar políticas públicas que atentam contra os pilares da democracia.
No caso específico do Ministério da Educação (MEC), a impressão que se tem é a de que as ações desenvolvidas pelo MEC têm por objetivo promover o esvaziamento do espaço público, notadamente as escolas e as universidades públicas, além de impor uma única perspectiva de pensamento social.
Para tanto, a implementação das escolas cívico-militares, a tentativa de regulamentar a prática do homeschooling, a adoção do voucher na Educação Básica e a intervenção na gestão democrática de diversas universidades e institutos federais exemplificam bem o que estou tentando afirmar.
Não obstante, iniciativas inspiradas no projeto Escola sem partido (ESP), embora tenham sido sepultadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ajudaram a propagandear a criminalização dos conteúdos educativos que tendem a contribuir com a formação cidadã das crianças e jovens, a exemplo da Filosofia, como também colaboram para que setores da sociedade persigam professores/as, especialmente os/as da área de Humanidades.
Talvez, não por acaso, alguns especialistas têm apontado que o MEC é um dos pilares do que tem sido denominado de “revolução cultural”, processo que visa a fortalecer valores morais com forte apelo anti-Iluminista, a todo custo, nem que sejam adotadas medidas autoritárias para que ela se concretize.
Essa onda, identificada pela literatura especializada por neoconservadora, não pode ser considerada como um ato promovido por um governo composto por lunáticos, por pessoas que não sabem o que estão fazendo ou até mesmo por incompetentes. Quando a ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou que o País estava entrando em uma nova era, onde meninos vestem azul e meninas vestem rosa, o recado foi dado.
Autores como John Holt e Roger Scruton são mencionados como possíveis fontes para a promoção desse movimento político que tem atingido a Educação brasileira. Não obstante, essas vozes encontram ressonância nos clássicos do neoliberalismo, especialmente Milton Friedman e Friedrich Heyek, ou até mesmo em vozes do ultraliberalismo, a exemplo de Robert Nozik.
Penso, portanto, que está em curso uma aliança entre o neoconversadorismo e neoliberalismo. Explico. A noção de Estado mínimo, típica do neoliberalismo, tem aspectos peculiares no campo educacional. O corte de recursos para a Educação, sucateando as instituições públicas de ensino ou até mesmo retirando-lhes a gratuidade, talvez seja o sinal mais evidente.
Friedman, expoente do neoliberalismo, defende que o Estado pode propiciar, de forma gratuita ou cedendo voucher diretamente para as famílias das crianças, incentivos para que todos/as possam ter acesso aos conhecimentos mais elementares para o convívio social. Por outro lado, qualquer tipo de ensino que impacte a qualificação dos indivíduos para o mercado de trabalho deve ser cobrado, visto que os dispêndios são elevados, oneram os cofres públicos, e os únicos beneficiados são as próprias pessoas.
Talvez isso explique frases do tipo “a sociedade brasileira tem um fetiche por universidade” ou “a universidade não é para todos” ter sido proferida por ministros da Educação do Governo Bolsonaro (sem partido). Em verdade, elas não foram ditas aleatoriamente.
Holt nega o papel da escola como espaço educativo e destaca um conjunto de argumentos. A degeneração social causada pela violência nas escolas, pela impossibilidade de ter um ensino público e gratuito com qualidade para todos/as, um suposto direito natural que os pais têm para educar os/as filhos/as e a maior aceitação da Educação a distância como substituta da escola convencional. Ao defender o homeschooling, Holt privilegia o espaço privado, e não o público, como local apropriado para educar.
Como resultado, pode-se ter a constituição de seitas religiosas e/ou políticas no recinto doméstico, medida que tende a impactar a constituição de uma sociedade democrática. Por outro lado, com a propagação de serviços educacionais a distância, a possibilidade da expansão de um mercado educacional privado tende a se tornar uma realidade.
Ora, e como isso pode atingir o Ensino de Filosofia em nosso País? Posso afirmar que é de diversas formas. As acusações de que os departamentos/faculdades de Filosofia nas universidades públicas são recintos de consumo e tráfico de drogas, que os/as professores/as fazem militância e doutrinação política, em vez de ministrar aulas, que o curso é reduto de comunistas são expressões comuns na narrativa palaciana.
Ao observar os programas que compõem a Política Nacional de Formação de Professores, constata-se que o número de bolsas para o PIBID e Residência Pedagógica foi reduzido entre as edições 2018-2020 e 2020-2022. A Licenciatura em Filosofia, por fazer parte do que é denominado de Humanidades, sofreu de forma direta.
No âmbito do novo Ensino Médio, nota-se que sua implementação nos estados tem reduzido a presença da Filosofia nos arranjos curriculares dos estados, medida que se soma à nova arquitetônica curricular da última etapa da Educação Básica, pautada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pelos itinerários formativos, caracterizada pela diluição e fragmentação dos conteúdos filosóficos.
A aliança entre neoliberalismo e neoconservadorismo, além de propiciar o sufocamento do espaço público no campo educacional, tem utilizado medidas autoritárias para se impor no interior das escolas e universidades.
Como tenho sustentado ao longo do texto, tais eventos não são obras do acaso. O que está em jogo é a constituição de um projeto educativo que valorize a formação de indivíduos submissos aos ditames de uma elite escravocrata, ignorante e que se submeteu, na condição de vassalos, ao mercado financeiro internacional.
Se a dita revolução cultural for efetivada plenamente, há forte tendência de amplos setores da sociedade serem submetidas a opressão, notadamente aqueles que compõem as camadas sociais mais marginalizadas pelo processo histórico do País, como também ficarem privados do espaço público e de gozar dos direitos sociais mais elementares.
Recorrer aos primórdios da democracia na Grécia antiga é mais do que uma tentativa de exercitar uma suposta erudição, é um esforço para promover uma reflexão genealógica dos dias atuais. Como se sabe, o diálogo entre os diferentes e a participação ativa dos homens e de mulheres livres no espaço público para a tomada de decisão caracterizam, minimamente, os regimes democráticos.
Ao sufocar o Ensino de Filosofia, estrangulando financeiramente os cursos de Filosofia nas universidades públicas e/ou fragilizando seu ensino na Educação Básica, permite-nos diagnosticar qual é o caminho que os atuais mandatários do país querem levar a sociedade brasileira.
Em suma, Sócrates, ao se submeter ao envenenamento por cicuta, mesmo sabendo que sua condenação foi injusta, preferiu defender os valores que julgava pertinentes ao seu tempo. Com esse gesto, deixou-nos o legado de que resistir contra a arbitrariedade dos assassinos da liberdade e da democracia é o caminho mais oportuno para defender a Filosofia e, de forma específica, o Ensino de Filosofia.