Epistemologias Feministas: Diálogos Convergentes
Janyne Sattler
Profa. UFSC, integrante do GT Filosofia e Gênero e do Projeto Uma Filósofa Por Mês
16/09/2022 • Coluna ANPOF
Série especial - Minicursos XIX Encontro Anpof
Não tem mais volta. A conversa epistemológica entre as filósofas ganhou muita força e amplitude nos últimos anos – manifestamente no Brasil. De um momento de aprendizado a uma complexificação textual e temática, as epistemologias feministas têm feito suas denúncias a respeito das exclusões estruturais sistemáticas de corpos plurais do universo acadêmico e filosófico que refletem um arcabouço epistemológico assentado sobre um tipo unívoco de corpo – que se deseja incorpóreo e universalmente substituível sem o ser. A partir das denúncias, as epistemologias feministas têm dialogado sobre outros rumos possíveis, mais plurais e democráticos, às questões de subjetividade, conhecimento e saber, verdade, justificação, autoridade, e critérios de validação da experiência epistêmica, com a inclusão de conceitos como corporeidade, localização e situação. Ambos os momentos, de crítica e projeto, são eminente e inescapavelmente políticos. Os diálogos entre as epistemólogas convergem, assim, em sua diversidade, ao ineludível político presente em qualquer proposta epistemológica.
Desde a crítica, as epistemologias feministas têm insistido na questão da construção do sujeito epistêmico a partir da historicização da própria epistemologia, e desmentido a apatia do conhecimento como crença verdadeira e justificada, exprimível proposicionalmente apenas. Ora, a demanda das enunciações epistêmicas balizadas pelos critérios de imparcialidade, neutralidade, objetividade, são precisamente as demandas realizadas pelo “sujeito universal” – o qual, a despeito da tentativa de mascaramento, tem na verdade um rosto bastante conhecido da tradição filosófica, a ponto de não ser preciso apontá-lo. Quem é o sujeito epistêmico universal? Todo mundo e ninguém, já diria Donna Haraway em sua alusão ao ponto de vista da onipresença. Mesmo assim, ele, o (suposto) sujeito universal, acaba por fundamentar não apenas as questões de legitimação e validação epistêmica, mas também aquelas de legitimação e validação experiencial (cuja pessoalidade não serve para os fins de justificação epistêmica), procedendo a uma generalização da própria experiência filosófica e do que significa pensar e escrever sobre essa experiência, ou seja, do que significa pensar e escrever filosoficamente. Há aí uma generalização que funciona como um pressuposto que informa o conceito de reflexão e de escrita filosófica como uma atividade epistemicamente desinteressada, cujo corolário é um conceito de ‘filosofia’ que (supostamente) produz e reproduz um tipo monolítico de feitura reflexiva e textual. Ou assim as coisas parecem ser justificadas hodiernamente pelos comitês gestores do significado de ‘filosofia’.
Note-se, porém, que apesar dos critérios arvorarem-se estar baseados sobre a longa tradição filosófica, eles aplicam-se bem ou mal apenas à filosofia acadêmica contemporânea, ao malestream dos grandes centros universitários, regido pelos quantificativos de publicação por avaliação “cega”. Eles na verdade não se aplicam à reflexão e aos textos do cânone filosófico. Afinal, mesmo que retirássemos os nomes dos nossos filósofos de seus textos, os seus textos ainda assim seriam contextualmente localizados sobre uma experiência histórica, conceitual e livremente corporificada. É sua posição enunciativa privilegiada o que permite a própria enunciação. Daí advém o curioso fato de que a diversidade textual da história da filosofia (pensemos na miríade de estilos argumentativos pessoalmente já empregados pelos filósofos que há tanto tempo estudamos, do diálogo à carta, da memória ao manifesto) seja lida nas academias sem qualquer tolhimento – apesar, claro, do aplainamento autoral contemporâneo exigido para nossos artigos publicáveis.
E, no entanto, uma parte considerável das filósofas desapareceu do quadro da história da filosofia sob a escusa de que suas reflexões e seus textos não cumpriam, ou não cumprem, os critérios de outorga acima elencados. Mas se também os filósofos homens não o cumpriam, então o critério de cumprimento do significado da ‘filosofia’ e da ‘escrita filosófica’ não é o cumprimento do critério, mas a adequação do gênero.
Assim, o trabalho epistemológico é imprescindível para a compreensão das consequências políticas de nossas atividades filosóficas. Sobretudo para a compreensão das implicações mútuas entre exclusão epistêmica e exclusão filosófica, e o que significa, para cada sujeito epistêmico localizado, ‘refletir’ e ‘escrever filosofia’ como uma atividade filosoficamente legitimada ou não pela comunidade filosófica. Nesses termos, fazer filosofia é fazer política, e os critérios decisórios para a consideração a sério de escritas filosóficas de mulheres filósofas, como de outros sujeitos excluídos da história da filosofia, é tornar a atividade filosófica mais democrática.
Poderíamos compreender este aspecto afeito à democracia e à abertura reflexiva para corpos reflexivos diversos como espelhado pelo aspecto afeito à pluralidade da experiência epistêmica.
Então, o que fazer?
Começar pela escuta dos sujeitos canonicamente desprovidos de autoridade epistêmica (entre mulheres, populações negras e indígenas) e deslegitimados em suas expressões de justificação e experiência cognitiva. Considerar privilegiadamente as reflexões produzidas por filósofas e por filosofias interseccionais e decoloniais, sendo a interseccionalidade é um traço que caracteriza uma abertura da filosofia feminista às questões sociais e políticas atravessadas por raça e classe e outros marcadores experienciais, e a decolonialidade um traço de deslocamento epistêmico relativamente às heranças filosóficas e políticas deixadas pela colonização e pela colonialidade sobre corpos e saberes.
Evidentemente, estas reflexões têm profundas implicações para o próprio conceito de filosofia ou de atividade filosófica, e para a compreensão de seus conceitos formativos. Isso significa que a continuidade propositiva das epistemologias feministas deverá seguir por uma nova senda conceitual, e que o reconhecimento das injustiças epistêmicas produzidas sobre sujeitos socialmente marcados requer o reconhecimento de outros corpos como sujeitos epistêmicos. Ou, poderíamos mesmo dizer, requer o reconhecimento do corpo e de sua localização e experiência cognitiva como dado epistemológico e político necessário à atividade filosófica.