Especial 8M - A dupla jornada das Filósofas na educação básica
Dayane Evellin de Sousa Costa
Mestre em Filosofia pela UFC (PROF-FILO) e Professora de Filosofia da Rede Estadual do Ceará.
13/03/2025 • Coluna ANPOF
Discutir sobre a presença das mulheres e o ensino de Filosofia no Brasil é uma atividade que levanta muitas questões importantes. Tenho observado um crescente interesse entre estudantes do ensino médio ao apresentar filósofas, o que representa um avanço significativo em direção a um ensino de Filosofia abrangente. No entanto, essa evolução se dá no contexto em que o Novo Ensino Médio (NEM) possibilita às redes de ensino a exclusão de disciplinas do currículo. Ou seja, enquanto há uma organização para o fortalecimento do movimento de mulheres na Filosofia em diversos departamentos do país, a educação básica enfrenta a ameaça de não poder testemunhar essa revolução.
Sou professora da rede estadual do Ceará há onze anos, lecionando no ensino médio em uma escola com itinerário profissional. Por aqui, já vivemos uma parte desse novo ensino médio desde 2008 quando as primeiras escolas profissionais foram inauguradas. Somos velhos conhecidos do tal currículo “diversificado” que compõe uma parte significativa das horas do NEM. Em uma turma de primeira série, por exemplo, existem três horas/aula destinadas à disciplina de Projeto de Vida, duas de Empreendedorismo, duas de Mundo do Trabalho. O material dessas disciplinas, vem “pronto” da secretaria de educação, que firma parceria com instituições privadas. Aqui, vale lembrar das professoras e professores que estão em sala de aula com essas disciplinas e que resistem ao seu teor neoliberal produzindo materiais significativos à realidade de nossos estudantes.
Em contraponto à carga horária da base diversificada, temos uma hora/aula de Filosofia por semana. Cinquenta minutos de Filosofia por semana[1]. Se você não é professora ou professor de ensino médio pode estar achando que eu fiz as contas erradas, mas não, é isso mesmo. Observe que eu estou escrevendo de um dos estados que manteve o componente curricular da filosofia no ensino médio, onde existe articulação entre o Fórum de Ensino de Filosofia, as Universidades (UECE, UFC, UVA, UFCA) e a Secretaria de Educação, para realizar anualmente um Encontro Cearense de Professores de Filosofia, já indo para a V edição. Que conta, entre seus outros programas de pós-graduação, com um voltado exclusivamente para o ensino de Filosofia, o PROF-FILO (UFC). Ou seja, quase posso chamar essa situação de privilégio.
É nesse espaço encolhido, porém resistente, que a Filosofia está inserida na realidade do ensino médio. Então eu pergunto, você imagina o espaço que as filósofas ocupam dentro dessa grade curricular da educação básica?
Oficialmente, quase nenhum. Principalmente se nos basearmos pelos livros didáticos e documentos oficiais de matrizes curriculares. Taís Silva Pereira (2022) em seu trabalho, As marcas da opressão: A ausência das pensadoras nos livros didáticos de filosofia à luz do pensamento de Iris Marion Youg, ao analisar a representatividade de mulheres nos livros didáticos de filosofia indicados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) nos fornece uma reflexão sobre o assunto. Analisando pesquisas que foram feitas de maneira qualitativa, tendo como referência não apenas filósofas citadas, mas também com trechos de suas obras presentes no livro, Pereira (2022) delimita as obras analisadas a oito exemplares entre os estudos que observou, e o número de filósofas que aparecem figuram entre cinco e onze. A autora ressalta a delimitação das obras e reforça que não encontra um propósito deliberado contra a presença de mulheres, porém essa ausência é sentida por professoras, professores e estudantes.
Analisando pesquisas que vão desde trabalhos de conclusão de especialização a dissertações de mestrado, o trabalho de Pereira foi publicado em 2022, o mesmo ano em que a distribuição dos livros do PNLD mudaria, a partir daí os que chegariam para análise nas escolas são separados por área de conhecimento, obedecendo a lógica do NEM. Ou seja, o material de Filosofia que existe, principalmente nas redes públicas, é um livro genérico que pretende abordar História, Geografia, Filosofia e Sociologia. Para exemplificar sobre a coleção que “utilizamos”, não vou chegar até a análise das pensadoras destacadas nesse material, vou partir de um tema que está em qualquer manual de filosofia do ensino médio, a Filosofia Grega: são exatas seis páginas.
Ora, mais o que esperar de uma reforma na educação básica iniciada em um contexto político desfavorável à democracia, continuada através de um governo que desferia ataques diretos às universidades e em especial às Ciências Humanas, negando o direito de participação e debate por parte dos docentes e discentes da educação básica, e posta em prática por um governo mais aberto ao diálogo, que, no entanto, cedeu à pressão do capital privado?
A estrutura patriarcal se reforça a medida em que o capitalismo se aprofunda. Nós mulheres sempre produzimos, nosso apagamento não é ao acaso ou porque simplesmente não restaram registros, ele é estratégico dentro que uma estrutura de submissão. A professora Cristiane Marinho (2021) no prefácio da obra 12 mulheres 12 Filósofas e 12 Artistas destaca que no Brasil, a produção de mulheres na filosofia, artes e ciência foi invisibilizada a partir do medo da desagregação familiar, sustentado pela ideia cristã da sagrada vocação feminina da reprodução, favorecendo a divisão social do trabalho e o funcionamento capitalista (2021, p.16).
É nesse cenário que os esforços das mulheres nos mais diversos âmbitos da Filosofia se unem. Enquanto professora do ensino médio, com o tipo de material didático oficial disponível para meu uso, a alternativa, quando me comprometo com um ensino que respeite a existência de filósofas, é pesquisar e elaborar materiais a serem utilizados em sala de aula. Nesse ponto, vale aqui destacar a ironia da dupla jornada filosófica, estudar, revisar o que a tradição aponta enquanto válido e fazer o mesmo em relação ao pensamento feminino. Tal tarefa destaca o caráter marginal que precisa ser superado quando falamos de estudar mulheres na filosofia.
Precisamos defender que o pensamento feminino esteja compondo ementas de disciplinas, em bancas de concurso, que sejam aceitos enquanto referencial teórico nas mais diversas linhas de pesquisa nas pós-graduações, que estejam nos exames de avaliação do ensino básico. Não se trata de conferir uma “utilidade” à disciplina, mas sim como mais um fator que colabora com a defesa de um ensino de filosofia que se disponha amplo e democrático, plural e ético ao compreender o machismo enquanto um problema. Afinal, posso ser mulher e filosofar, posso estudar autoras mulheres e ainda ser filosofia.
Por isso destaco ser de fundamental importância para que os pensamentos de filósofas sejam conhecidos nas aulas do ensino médio, toda a produção acadêmica realizada pelas pesquisadoras nas graduações, pós-graduações, grupos de trabalho, publicação de livros, artigos e um agradecimento especial às pesquisadoras que colaboram com a Enciclopédia Mulheres na Filosofia, ancorada no blog da UNICAMP. Suas pesquisas têm chegado, mesmo que passando por uma simplificação didática, mesmo que apenas com cinquenta minutos semanais, até o conhecimento de estudantes da educação básica. Pode parecer pouco (e de fato ainda é) mas quem conhece a inquietação e curiosidade da juventude entende a potência que pode ser. Desse modo, vamos juntas.
Referências
MARINHO, Cirstiane. Prefácio. In: MULLER, M; BAHDUR, D. (Org.) 12 Mulheres 12 Filósofas 12 Artistas. 1ª. ed. Londrina: Engenho das Letras, 2021. p. 15 – 33.
PEREIRA, Taís Silva. As marcas da opressão: a ausência das pensadoras nos livros didáticos de filosofia à luz do pensamento de Iris Marion Young. In: AGGIO, Juliana; FAUSTINO, Silvia; ARAÚJO, Carolina; SOMBRA, Laurenio (Org.). Filósofas. Curitiba:Kotter Editorial, 2022.
Notas
[1] Descrevo a realidade das Escola Profissionais do Ceará, as EEEP’s. Existem outras modalidades de ensino no estado, incluindo Educação de Jovens e Adultos (EJA), Ensino Médio regular e profissionalizante, Educação a Distância (EaD) e Ensino Híbrido. A não ser que existam experiências específicas não publicadas, em geral a carga horária de Filosofia permanece com uma hora aula.