Especial 8M - A questão das fontes no resgate de filósofas brasileiras oitocentistas
Nastassja Pugliese
FE/UFRJ - PPGLM/UFRJ
Juliana Silva de Souza
Graduanda em pedagogia na UFRJ, pesquisadora de Iniciação Científica
12/03/2025 • Coluna ANPOF
Em colaboração com GT Mulheres na História da Filosofia e Cátedra UNESCO-UFRJ para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura
Um ponto importante nos debates sobre as obras de mulheres filósofas é o problema das fontes e o modo como tratamos as diferenças entre elas nas análises e no ensino da história da filosofia. Consideramos como fontes primárias os diversos materiais produzidos em um período histórico determinado (leis, documentos, artefatos, livros, cartazes, pinturas, ferramentas, vestuário, filmes, fotografias) e, no caso de um filósofo ou filósofa, os materiais produzidos pelos autores (manuscritos de textos, tratados, ensaios, artigos, correspondências, notas de aulas, diários) ou a eles relacionados (certidões de nascimento e óbito, lista de livros de suas bibliotecas, registro de curso superior). A história da filosofia se dá tanto através dos estudos interpretativos de um texto ou de uma obra específica de um autor ou autora quanto através da reconstrução do contexto história no qual uma determinada produção filosófica foi realizada. Além disso, a história da filosofia também se realiza através da análise da língua-fonte e dos estudos comparativos entre traduções. As interpretações feitas sobre os textos ao longo do tempo, sejam interpretações filosóficas ou apropriações temáticas através de obras culturais (filmes, músicas, teatro, etc) constituem o conjunto de fontes secundárias relacionados à recepção do texto do autor ou da autora nos tempos subsequentes. Assim, poderíamos pensar que quanto mais distante no tempo estiver um autor ou uma autora, maior a quantidade de fontes disponíveis sobre autor, obra e tempo histórico. No entanto, isso não ocorre. E, na verdade, quanto mais distante no tempo formos, mais difícil é de encontrar fontes primárias.
As fontes que temos disponíveis estão sempre sujeitas a curadorias - que ocorrem ao longo do tempo - não-neutras, sempre naturalmente interessadas em moldar narrativas, sejam elas da história geral, da história das idéias, procurando argumentar pela relevância ou impacto de um filósofo ou filósofa qualquer. Isso implica que não há uma isonomia entre os personagens históricos e filosóficos que existiram e os que são rememorados, ou seja, não é dado o mesmo peso, o mesmo valor, a diferentes fatos e personagens históricos, a filósofos e filósofas, a textos de acadêmicos e não acadêmicos, a tratados e a panfletos. A princípio, não há nada além do valor simbólico de certas obras e fatos históricos que obrigue um projeto de resgate (como o projeto de resgate Barão do Rio Branco ou o mesmo a seleção de originais para digitalização na Biblioteca Nacional) a investir tempo e recursos, sempre limitados, na preservação de documentos que não ressoam na memória coletiva. Portanto, uma diretriz fundamental do projeto de resgate das obras de mulheres filósofas realizado pela Cátedra UNESCO-UFRJ para História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura, é o esforço de colaboração interdisciplinar para a valorização de fontes históricas que contribuam para a reconstrução, a preservação e o fortalecimento do valor simbólico da história da filosofia brasileira.
Dois tipos de fontes que negligenciamos no âmbito da pesquisa filosófica são os jornais e panfletos. Há diversas hipóteses para explicar a pouca relevância dada a estes tipos de fonte, entre elas, estão as limitações do método estruturalista e o espírito de sistema que o acompanha — mas este é assunto para outro momento. Nos importa mostrar que os jornais e os panfletos são fontes dignas de investigação filosófica e podem nos ajudar não só a encontrar vozes apagadas da história da filosofia mas também são importantes para a reconstrução do contexto de debate político e teórico. Na nossa pesquisa, realizada tanto no Grupo de Pesquisa Outros Clássicos UFRJ/CNPQ quanto no projeto de extensão Memória e Acervos Digitais, procuramos tratar jornais e panfletos como fontes primárias relevantes para a formação da filosofia no Brasil, principalmente no período pós-colonial ou pré-republicano (Pugliese 2022). Deste modo, tomamos os arquivos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional como centro de nossas pesquisas e procuramos mapear e transcrever documentos centrais para a reconstrução da história da filosofia no Brasil e para o resgate e demonstração das contribuições das intelectuais brasileiras. É nestes jornais que vemos as lutas e resistências que as mulheres enfrentaram para lograr seu espaço na esfera pública. No século XIX, este embate, anteriormente individual, materializou-se pelas mãos de mulheres filósofas transformando-se em luta coletiva através de seus escritos na imprensa. Entre revistas e jornais editados e escritos por mulheres, a imprensa feminina foi o principal veículo de informação e difusão das reividicações de direitos (como o direito à educação, ao divórcio, à propriedade) e possui grandiosa relevância histórica no âmbito social, político e cultural brasileiro.
Um exemplo emblemático é o Jornal das Senhoras, editado por Juana Manso. No entanto, há mais de 200 jornais oitocentistas produzidos, escritos e editados por mulheres pensadoras que, na maioria das vezes atuavam também como diretoras de escolas para meninas. Por exemplo, por dezessete anos (1873 a 1889), o jornal O Sexo Feminino desempenhou com louvor a missão para o qual foi criado: divulgar os ideais de liberdade das mulheres, contestar as expectativas de subserviência aos homens, defender a emancipação e principalmente seus direitos à educação a partir da ampliação do acesso e da garantia de equidade curricular em suas escolas. Lançado em 7 de setembro de 1873 por Francisca Senhorinha da Mota Diniz, o periódico foi publicado na cidade de Campanha em Minas Gerais por exatamente um ano. Logo após, Francisca Senhorinha da Mota Diniz mudou-se para o Rio de Janeiro, dando continuidade às publicações semanais do jornal a partir de 22 de julho de 1875 até 22 de abril de 1876, contabilizando sessenta e seis edições. Por problemas de saúde seus e de sua família, o jornal foi suspenso e retornou no dia 2 de junho de 1889 com mais dez edições quinzenais. Neste intervalo, Francisca Senhorinha da Mota Diniz criou mais dois periódicos A Voz da Verdade (1880) e Primavera (1880).
Segundo a autora e editora, a data de criação do jornal em 7 de setembro foi uma “Feliz coincidência!” (Diniz, 1873, p.2) com a data comemorativa da Independência do Brasil. Mas, já de modo intencional, no dia 15 de dezembro de 1889, o jornal O Sexo Feminino passou a se chamar O Quinze de Novembro do Sexo Feminino. A mudança do nome do jornal, precisamente no dia da Proclamação da República, evidencia as expectativas (e as críticas) de Francisca Senhorinha da Mota Diniz sobre o regime republicano que se estabelecia. Conjecturando a educação da mulher como único caminho para sua emancipação, a transição do nome do jornal nesta data intensificava e fortalecia suas argumentações em torno da necessidade de participação das mulheres no novo regime. Com publicações de cunho político, as oito edições do jornal O Quinze de Novembro do Sexo Feminino suscitaram questões relativas ao sufrágio, as reinvindicações por educação e pela participação das mulheres na construção social e política do Brasil.
A perspicácia de Francisca Senhorinha da Mota Diniz em um momento estratégico de transição e fervor político do país, pode ser comparada à de Olympe de Gouges na França em 1791, quando ela clama por direitos e rupturas sociais, culturais e políticas publicando A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã em plena Revolução Francesa. Com um documento jurídico de apelo fervoroso pela emancipação feminina, em resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão publicado dois anos antes, Olympe de Gouges rompe paradigmas propondo dezessete artigos para integrar a Constituição Francesa em favor das mulheres. A questão, tanto para Diniz quanto para de Gouges, era: se a república é um regime político para todos, ela só alcançará sua verdadeira forma universal quando dela as mulheres puderem participar.
A imprensa feminina no séc. XIX no Brasil desbravou caminhos em uma sociedade profundamente desigual e na qual as mulheres escritoras utilizaram-se da escrita pública como ferramenta de enfrentamento. Os jornais O Sexo Feminino e o Quinze de Novembro do Sexo Feminino tiveram esse papel na sociedade brasileira, norteando as percepções sociais sobre a mulher com o propósito de ampliar os debates sobre a emancipação feminina. Eles são exemplos de que a imprensa oitocentista operava como instrumento de disseminação de idéias e tinham, portanto, um grande potencial de transformação social. Francisca Senhorinha da Mota Diniz, como várias outras, enunciavam as questões com tom panfletário, mas evocativo do compromisso coletivo para que fosse possível estabelecer as mudanças desejadas:
“Tratando-se de questão tão transcendente, unamos nossas forças afim de fazer entrar na arena do combate travado para a restauração dos direitos de igualdade o problema da nossa Racional Emancipação.” (Diniz, 1889, p.1)
Para Francisca Diniz, a condição social da mulher determinava o grau de civilização de seu povo, o que justifica seus esforços para conquistar o apoio de suas “patrícias” – como ela se referia às suas conterrâneas. Movida pela indignação às condições sociais da mulher, Diniz editou seus jornais e conquistou, além de leitoras, um importante espaço público para as mulheres.
O caso de Francisca Senhorinha da Mota Diniz é um entre vários. A tarefa de organizar, mapear, catalogar, divulgar e promover os estudos de filósofas brasileiras é um dos princípios orientadores dos trabalhos da Cátedra UNESCO-UFRJ para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura. A Cátedra conta com financiamento da FAPERJ e da CAPES. Procurando integrar projetos de pesquisa, ensino e extensão, estamos construindo nossa base de dados como um grande projeto colaborativo em Humanidades Digitais. Com esse trabalho, esperamos contribuir para a ampliação dos recursos históricos, metodológicos e didáticos para o estudo das obras de mulheres brasileiras na história da filosofia. O nosso site piloto foi lançado no final do ano passado e convidamos a todas e todos para visitá-lo e saber mais sobre nossas iniciativas no resgate das obras de filósofas brasileiras oitocentistas: catedrahistoriadasmulheres.com
Referências
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. O dia sete de setembro. O Sexo Feminino, Campanha, 07/09/1873. Seção O Sexo Feminino. p. 2.
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. O quinze de novembro. O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, Capital Federal, 15/12/1889. Seção O Sexo Feminino. p. 1.
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. A Racional Emancipação da Mulher. O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, Rio de Janeiro, 30/09/1890. Seção O Quinze de Novembro. p.1-2.
DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil: Século XIX – Dicionário Ilustrado. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.