Especial Anpof 8M: 30 anos de desigualdade de gênero na filosofia acadêmica brasileira

Carolina Araujo

Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Fernando de Sá Moreira

Professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal Fluminense

Mitieli Seixas da Silva

Professora do Departamento de Filosofia da UFSM

Hugo Mota

Doutorando em Filosofia pela Universidade de Oslo (UiO)

Marcos Fanton

Professor do Departamento de Filosofia da UFSM

04/03/2024 • Coluna ANPOF

Grupo DATAPHILO para GT Mulheres na História da Filosofia

A desigualdade de gênero na pós-graduação em filosofia no Brasil não é uma experiência subjetiva de algumas mulheres. Ao contrário, ela é uma experiência compartilhada e sustentada por dados empíricos, cuja realidade persiste inalterada há, pelo menos, 30 anos. Para sustentar essa tese, queremos apresentar dados de pesquisas inéditas realizadas pelo grupo Dataphilo, cujos integrantes são signatários desta coluna.

No Brasil, o tema “mulheres na filosofia” foi abordado, por um lado, por estudos descritivos sobre a ausência de mulheres pesquisadoras nos diversos níveis acadêmicos. Araújo (2016, 2019) e Ramos et al (2023), por exemplo, mostraram que a pós-graduação em filosofia é extremamente desigual no que se refere tanto à presença de mulheres orientadoras, quanto à permanência e possibilidade das estudantes ascenderem na carreira acadêmica. Por outro lado, estudos sobre renovação do cânone, como Pugliese (2019, 2020), mostraram, através de historiografia rigorosa, que mulheres sempre, a despeito de todas as dificuldades, estiveram presentes na filosofia e, portanto, que sua exclusão dos nossos currículos e pesquisas é exógena à própria história (Hagengruber, 2020; Witt, Shapiro, 2015; Waithe, 1987). Que essas são duas faces de uma mesma abordagem metafilosófica é confirmado pela hipótese do espelhamento, isto é, de que quanto mais as mulheres se veem representadas na história da filosofia (seja com temas de pesquisa, seja com role-models), mais mulheres entrarão e permanecerão em nossa área (Araújo 2023).

Ao compartilhar os resultados de estudos inéditos sobre desigualdade de gênero na pós-graduação, gostaríamos de contribuir para avançar nesse tema através de metodologia empregada nas humanidades digitais[1]. Um dos objetivos desses estudos é oferecer uma visão sobre a estrutura da comunidade filosófica brasileira e sobre o perfil acadêmico de seus pesquisadores. Outro objetivo é contribuir com a hipótese do espelhamento através da descrição das relações de orientação na pós-graduação entre orientadoras e pesquisadoras em uma perspectiva comparada. Para ler um dos estudos e sua metodologia na íntegra, remetemos o(a) leitor(a) à versão pré-print de nosso manuscrito, que está em avaliação.

Para investigar a filosofia acadêmica brasileira, nós empregamos uma técnica de mineração de textos denominada Modelagem Estruturada de Tópicos (Structural Topic Model - STM) (Roberts et al. 2014, Grimmer et al. 2022). Muito resumidamente, essa análise permite inferir tópicos latentes em dado corpus linguístico através de um padrão de co-ocorrência de palavras utilizadas em cada documento. Assim, cada tópico é definido por um conjunto específico de palavras associadas. Por exemplo, quando ouvimos alguém utilizando palavras como ‘razão pura’, ‘filosofia transcendental’, ‘juízos sintéticos a priori’, identificamos rapidamente que essa pessoa está falando, muito provavelmente, sobre alguma questão da filosofia kantiana[2].

O corpus da filosofia nacional foi construído a partir do Catálogo de Teses e Dissertações, disponibilizado publicamente no Portal CAPES – Dados Abertos (https://dadosabertos.capes.gov.br/). Uma espécie de ‘censo’ da produção da pós-graduação, esse banco possui, só na área da filosofia, um total de 12.525 observações, que vão de 1987 a 2021, com uma série de metadados de cada trabalho final. Na tabela abaixo, temos um retrato descritivo da nossa área utilizando algumas variáveis disponíveis no banco e, no caso das variáveis de gênero, derivadas de maneira automatizada através do primeiro nome dos(as) autores(as).

Como podemos ver, a filosofia brasileira possui uma disparidade na produção de teses e dissertações no que diz respeito às regiões do país. Os trabalhos finais concentram-se, em sua maioria, no Sudeste, que possui aproximadamente 56% de todas as defesas. Universidades como USP, UFRJ e UNICAMP compõem, coletivamente, um total de 22.5% dos trabalhos (somente a USP concentra 10%). A segunda região com o maior número de trabalhos é a região Sul, com 25%, e as outras regiões juntas possuem um pouco mais de 20%.

Em relação à desigualdade de gênero, fica muito claro que a pós-graduação em filosofia no Brasil é e continua profundamente desigual. Mulheres orientaram menos de 20% de todos os trabalhos e pesquisadoras são responsáveis por menos de 30% de todos os trabalhos defendidos na área de filosofia.

No gráfico acima, podemos verificar que essa tendência é estável ao longo de todo período da pesquisa. Além disso, se olharmos a relação de orientação estabelecida na pós-graduação, podemos compreender como a orientação de uma pesquisadora mulher por uma orientadora mulher é, proporcionalmente, ínfima: apenas 6,5%. Essa baixa proporcionalidade, porém, não diz tudo, já que, se olharmos em comparação, é possível afirmar que pesquisadoras mulheres têm 28% mais chance de serem orientadas por orientadoras mulheres do que por orientadores homens.

Por isso, nosso título não é um mero artifício retórico, ele apresenta um dado objetivo, a saber: a Filosofia no Brasil convive há 30 anos com desigualdade de gênero! A pergunta que salta aos olhos é: Por que essa realidade, a despeito de mudanças em nossa sociedade, persiste inalterada por tanto tempo? Tentando respondê-la a partir da hipótese do espelhamento, fomos investigar o que a filosofia brasileira tem pesquisado.

Para o emprego da modelagem estruturada de tópicos, realizamos uma análise dos resumos de teses e dissertações, disponibilizados no Catálogo. Contudo, para garantirmos um padrão qualitativo de informação de cada trabalho, precisamos excluir trabalhos que apresentavam resumos impróprios ou mal-formulados. Também optamos por excluir as dissertações dos Mestrados Profissionais, pois elas estão localizadas na subárea ensino de filosofia e mereceria um estudo próprio posteriormente. Ao final da filtragem, construímos um corpus de 11.726 teses e dissertações defendidas em programas de pós-graduação de filosofia entre 1991 e 2021.

O modelo final da análise resultou em 74 tópicos, que agrupamos em 7 categorias (a tabela com todos tópicos e categorias encontra-se na versão pré-print, p.15-17). Abaixo, gostaríamos de disponibilizar os 15 tópicos com maior prevalência para fins de ilustração. Cada tópico pode ser descrito com as seguintes informações: 1) rótulo e número; 2) as cinco palavras mais prováveis de cada tópico (matriz β); e 3) a prevalência estimada no corpus (matriz γ).

Ao olharmos os tópicos que emergem do corpus, encontramos um padrão: a imensa maioria dos tópicos (57 de 74) trata de autores, não de problemas ou conceitos específicos. Se contarmos a prevalência média de cada tópico com nome próprio entre as cinco palavras mais prováveis, chegamos a um montante de mais de 74% de teses e dissertações. Ou seja, podemos afirmar que um trabalho final típico de pós-graduação envolve a discussão de um problema, argumento ou conceito de filósofos específicos. Ao que tudo indica, essa é a primeira comprovação empírica de uma opinião comum sobre a filosofia nacional, cujas raízes históricas e institucionais já foram investigadas por autores como Paulo Arantes (1994), Paulo Margutti (2013, 2020), Ivan Domingues (2017) e vários outros (Nobre & Rego, 2000; Cabrera 2013; Wuensch 2016; Canhada 2020; Pugliese 2019, 2020).

Nota-se outro padrão muito importante: de todos os nomes de filósofos inclusos nos 57 tópicos, apenas um é de uma filósofa, Hannah Arendt. Mesmo se expandirmos a análise às dez palavras mais prováveis, não encontramos outro nome de mulher. É possível encontrar um tópico temático sobre estudos de gênero, que possui apenas 0,64% de prevalência estimada. Por isso, é importante qualificar o achado acima e afirmar que uma tese ou dissertação típica da pós-graduação em filosofia versa sobre problemas, argumentos ou conceitos de filósofos homens.

Para finalizar, gostaríamos de tecer algumas considerações. Em primeiro lugar, é importante afirmar que tais estudos referem-se apenas a teses e dissertações da pós-graduação em filosofia, o que significa dizer que realizamos apenas um recorte, embora muito importante, do cenário acadêmico nacional. Em segundo lugar, é preciso levar a sério o debate sobre cânone, sua consideração crítica e alargamento, alinhando iniciativas brasileiras a outras iniciativas internacionais, de modo a disponibilizar textos, arquivos e toda sorte de materiais de apoio para avançarmos na construção de currículos e pesquisas cada vez mais plurais e inclusivos. Em terceiro lugar, fica aqui o apelo à disponibilização de bancos de dados e estudos sobre a comunidade nacional para realizarmos um monitoramento periódico das desigualdades existentes na área. Uma parte importante desses dados vem de um preenchimento adequado dos formulários Coleta Capes. Por fim, dada a objetividade da persistência da desigualdade de gênero na pós-graduação da filosofia brasileira, é essencial um empenho de toda a comunidade para avançarmos em políticas e ações realmente eficazes para sua diminuição. Afinal, acreditamos que é do interesse de toda a comunidade que tenhamos um ambiente saudável, acolhedor e propício para o florescimento também das mulheres na filosofia.


Referências

Arantes, P. (1994). Um departamento francês ultramar: estudos sobre a formação da cultura filosofia uspiana (uma experiência dos anos 1960).  De. Paz e Terra.

Araújo, C. (2023).. Filósofas antigas para filósofas brasileiras. Cadernos de Letras da UFF,  34, 67, 87-105  https://doi.org/10.22409/cadletrasuff.v34i67.59888

Araújo, C. (2019). Quatorze anos de desigualdade: mulheres na carreira acadêmica de Filosofia no Brasil entre 2004 e 2017. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, 24(1), 13-33. https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v24i1p13-33

Araújo, C. (2016). Mulheres na Pós-Graduação em Filosofia no Brasil - 2015. Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. Disponível em https://anpof.org.br/forum/mulheres-na-pos-graduacao-em-filosofia-no-brasil/mulheres-na-pos-graduacao-em-filosofia-no-brasil

Cabrera, J. (2013). 2.ed. Diário de um filósofo no Brasil. Editora UNIJUÍ.

Canhada, J. (2020). O Discurso e a história: A filosofia no Brasil no século XIX. Edições Loyola.

Bystranowski, P., Dranseika, V., ?uradzki, T. (2022). Half a Century of Bioethics and Philosophy of Medicine: A Topic?modeling Study. Bioethics 36(9), 902–25. https://doi.org/10.1111/bioe.13087

Domingues, I. (2017). Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas. Editora UNESP.

Grimmer, J., Roberts, M., Stewart, B.M. (2022). Text as Data: A New Framework for Machine Learning and the Social Sciences. Princeton University Press.

Hagengruber, R. (2020) The Stolen History - Retrieving the History of Women Philosophers and its Methodical Implications. In: THORGEIRSDOTTIR, Sigridur; HAGENGRUBER, Ruth (eds.) Methodological Reflections on Women’s Contribution and Influence in the History of Philosophy. Switzerland: Springer Nature.

Malaterre, C., Chartier, J., Pulizzotto, D. (2019). What Is This Thing Called Philosophy of Science? A Computational Topic-Modeling Perspective, 1934–2015 HOPOS: The Journal of the International Society for the History of Philosophy of Science 9(2), 215-249.

Malaterre, C., Pulizzotto, D., Lareau, F. (2020). Revisiting Three Decades of Biology and Philosophy: A Computational Topic-Modeling Perspective. Biology & Philosophy 35(5). https://link.springer.com/article/10.1007/s10539-019-9729-4

Margutti, P. (2020). História da filosofia do Brasil: A Ruptura Iluminista (1808-1843). Edições Loyola.

Margutti, P. (2013). História da filosofia do Brasil: O Período Colonial (1500-1822). Edições Loyola.

Nobre, M.; Rego, J. M. (2000). Conversas com filósofos brasileiros. Editora 34.

Pugliesi, N. (2020). Sobre o resgate de obras filosóficas escritas por mulheres e algumas implicações pedagógicas. Revista PHILIA/ Filosofia, Literatura & Arte, 2(2), 418-444.

Pugliesi, N. (2019) A Questão do Cânone no Ensino da História da Filosofia. O que nos faz pensar, 45(28), 402-413. https://doi.org/10.32334/oqnfp.2019n45a672

Ramos, S. de S., Marques, B. S., Araújo, C., & Aggio, J. O. (2023). A Rede Brasileira de Mulheres Filósofas e a desigualdade de gênero na área de Filosofia. Perspectivas Em Diálogo: Revista De Educação E Sociedade, 10(23), 37-47. https://doi.org/10.55028/pdres.v10i23.17312

Roberts, M. et al. (2014) Structural Topic Models for Open-Ended Survey Responses. American Journal of Political Science, 58 (4), 1064–82. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/ajps.12103

Waithe, M. E. A History of Women Philosophers. Volume I. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1987.

Weatherson, B. (2022). A History of Philosophy Journals, Volume 1: Evidence from Topic Modeling, 1876–2013. Maize Books. https://doi.org/10.3998/mpub.12251719

Witt, C.; Shapiro, L. Feminist History of Philosophy. (2015) The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 9 mar. 2015. Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/fall2018/entries/feminism-femhist/. Acesso em: fevereiro de 2024.

Wuensch, A. (2015). Acerca da existência de pensadoras no Brasil e na América Latina. Problemata - Revista Internacional de Filosofia, 6(1), 113–50. https://doi.org/10.7443/24238


Notas

[1] Essas pesquisas limitam-se à variável gênero, porque é a única possível de ser automatizada através de metadados presentes nos bancos publicamente disponíveis pelo governo federal. Outras variáveis importantes para compreendermos o cenário de desigualdade da filosofia brasileira, como raça, classe ou deficiência, não permitem esse tipo de derivação.

[2] Encontramos alguns estudos recentes na filosofia que aplicaram essa técnica para investigar os principais tópicos abordados na filosofia da ciência (Malaterre et al., 2019 ), na filosofia da biologia (Malaterre et al. 2020), nas principais revistas anglófonas (Weatherson, 2022) e na bioética e filosofia da medicina (Bystranowski et al., 2022).