Esportes, E-sports e engenharia conceitual
Deiver V. de Melo
Mestrando em Filosofia (Unicamp)
25/01/2023 • Coluna ANPOF
A discussão em torno dos e-sports ganhou espaço após a declaração da atual ministra do esporte, Ana Moser, de que eles não constituiriam um esporte e, portanto, não seriam de responsabilidade da pasta. Ela também chegou a comparar o treino dos (supostos) atletas a ensaios de músicos – citando, mais especificamente, a cantora Ivete Sangalo – para concluir que os e-sports seriam parte da indústria do entretenimento, não do meio esportivo. Para deixar claro, e-sports são competições que envolvem jogos eletrônicos, podendo ser em equipes ou individuais. É claro que os gamers reagiram imediatamente, em especial porque a internet é seu hábitat, em uma enxurrada de críticas às declarações da ministra, envolvendo até o popular streamer Casimiro, que classificou a fala como “arcaica e grotesca”.
Apesar de não se tratar de um assunto tão urgente como o aquecimento global e o papel das minorias numa sociedade cada vez mais excludente, alguém que se dedica à filosofia pode acabar encontrando nesse debate uma mina de ouro – ou talvez uma pepita. Afinal de contas, como definimos o que entendemos pelo termo ‘esporte’? Responder a isso poderia ser uma forma de admitir a entrada, ou de expulsar de vez, os e-sports desse rol ao qual pertencem o futebol, o vôlei, o basquete, a natação e tantos outros. Mas, para além disso, compreender o funcionamento que damos a esse termo nos ajuda a ver um problema sobre o qual filósofos da linguagem vêm se debruçando há um bom tempo (muitas vezes sem sucesso, precisamos admitir). Trata-se da vagueza de termos.
Não é difícil ver como as linguagens utilizadas no cotidiano (seja o português ou qualquer outro idioma), tecnicamente chamadas de linguagens naturais, apresentam muitos termos envoltos por uma área de penumbra. Por exemplo, como definimos quem é calvo? Alguém que apresenta aqueles primeiros sinais de queda de cabelo, as famosas “entradas”, já é considerado um calvo, ou é preciso que se esteja em um estágio mais avançado? Quantos fios de cabelo distinguem um calvo de um não-calvo? Podemos fazer a mesma prática para termos como ‘ser vivo’ (vírus são seres vivos?), ‘filósofo’ (quem escreve este texto pode ser considerado filósofo?) e, claro, ‘esporte’. Entender a vagueza é um passo importante para entendermos como funcionam nossas linguagens naturais. O caso dos e-sports parece esbarrar numa indefinição de todos os requisitos para definir que seria considerado um esporte, afinal de contas. E para resolver tal problema, nada melhor que observar minuciosamente o que queremos dizer quando usamos o termo em questão, de maneira a talvez diminuir a vagueza, num esforço de engenharia conceitual.
A comparação com a música de Ivete Sangalo foi uma tentativa da ministra de definir o que esta entende por esporte. De qualquer forma, ela afirmou que não é apenas o fato de exigir treinamento que torna e-sports um tipo de prática esportiva. Nesse ponto, ao menos, ela parece ter razão. Se definíssemos esporte pelo simples fato de que os praticantes precisam treinar para alcançar certa competência, teríamos muitas tarefas, como cortar cabelos ou tocar violão, que poderiam se enquadrar nesse requisito. Entretanto, o que temos aqui, diferente do que a ministra pensa, não é algum critério que elimine os e-sports da possibilidade de serem esportes, mas simplesmente a constatação de que o treinamento envolvido não é causa suficiente para determinarmos uma atividade como sendo esportiva. Um aspecto intimamente ligado à questão do treino, e que pode ser evocado por alguns, é o da fisicalidade; isto é, só é esporte aquilo que envolve esforço físico. Todavia, basta nos lembrarmos da presença do tiro e do curling nos jogos olímpicos de verão e de inverno, respectivamente, para notarmos que a fisicalidade não é um aspecto determinante em nossa definição.
Numa tentativa de reforçar seu argumento, a ministra afirmou ainda que jogos eletrônicos não têm o elemento da imprevisibilidade, mas que são uma programação num sistema fechado, o que os diferencia do esporte. Diferente do passo anterior, o que se quer dizer aqui com ‘imprevisível’ e ‘sistema fechado’ é quase uma incógnita. Afinal de contas, as regras do vôlei e do futebol constituem também um sistema fechado, no sentido usual. Do mesmo modo que um jogador não pode segurar a bola com as mãos e atravessar o campo correndo no futebol, os competidores dos e-sports não têm a possibilidade de utilizar algum tipo de jogada que não é permitida pela programação do próprio jogo. E não há nada de mais nisso em comparação aos esportes, digamos, tradicionais. Todos possuem um sistema de regras e de movimentos permitidos, determinados num sistema para fora do qual já não se considera mais uma prática daquele esporte. Se um dia alguém liga a televisão e vê o time do Flamengo correndo de um lado para o outro com a bola nas mãos em pleno Maracanã, vai pensar que há algo de errado, que os jogadores não estão praticando futebol, mas outra coisa. Além disso, evocar a imprevisibilidade é quase como um bater os pés durante uma discussão; afinal, qualquer um que tenha participado de uma partida de qualquer jogo eletrônico sabe que é impossível saber, de antemão, quem vencerá. Logo, é óbvio que há imprevisibilidade.
Outro ponto da fala de Moser que chama atenção é quando ela afirma que a Lei Geral do esporte foi feita em seu texto de maneira a proteger o “esporte raiz”, sendo um resultado da luta de vários atletas a não inclusão dos esportes eletrônicos. Chamar de “esporte raiz” o que seria aquilo que de fato se considera esporte, nesse caso, é claramente um caso da falácia do verdadeiro escocês. Diante do fato de que os e-sports apresentam determinadas características comuns aos esportes, dizer que eles não constituiriam um “esporte de verdade”, ou, nos termos colocados pela ministra, um “esporte raiz”, é uma declaração sem qualquer sentido.
A definição de esporte parece ser de um caráter muito mais social do que propriamente ligado a alguma essência distintiva da prática esportiva. Não nos esqueçamos que, até alguns anos atrás, o skate não era considerado um esporte e, há não muito tempo, estávamos torcendo para a fadinha Rayssa Leal nas Olimpíadas de Tóquio. É claro que em casos muito óbvios como cortar cabelos ou tocar violão não teremos a reivindicação de que sejam práticas consideradas esportivas algum dia. Há um conjunto de características que parecem necessárias, mas não suficientes, para a determinação de um esporte, como o fato de ser uma atividade competitiva, de exigir treinamento e de envolver um certo nível de imprevisibilidade, para tomar apenas alguns dos critérios que foram apresentados. Entretanto, também é necessária uma espécie de reconhecimento por parte de uma instância específica para que algo seja considerado um esporte, assim como os membros de uma sociedade secreta precisam ser reconhecidos como tendo tal status pelos outros participantes. Todavia, o ministério do esporte é justamente a instância que tem poder de decidir se algo recebe ou não tal reconhecimento em vias legais ou burocráticas e, desse modo, não se pode apelar ao próprio não reconhecimento dos e-sports como esportes para se justificar. Basta uma assinatura num documento para que a situação seja alterada.
Se os e-sports serão ou não alçados à condição de prática esportiva parece ser, então, uma questão dependente da boa vontade da parte daqueles que têm poder para isso. As políticas públicas no esporte voltadas aos atuais e aos futuros pro-players que podem surgir desse reconhecimento são de uma grande importância para a comunidade de jogadores. Não é por uma diferença essencial, profunda ou metafísica que temos esse debate, mas trata-se de uma discussão em grande parte social. Em questões de engenharia conceitual pura e simplesmente, não podemos afirmar que os e-sports não atendem a um mínimo necessário para serem considerados uma modalidade esportiva; na verdade, eles atendem a tais requisitos. O que separa os e-sports dos esportes, portanto, não é algum aspecto conflitivo em relação a essa categoria, nem a ausência de alguma característica necessária. Essa lacuna é fruto da falta de vontade de quem tem uma caneta em mãos e o poder necessário para mover o aparato institucional e incluir os pro-players no mesmo âmbito burocrático que outros esportistas que praticam os ditos esportes tradicionais (ou os “esportes raiz”).