Fenomenologia: "uma sinfonia a muitas vozes"

Janilce Silva Praseres

Pós-doutoranda em Filosofia na Universidade da Beira Interior

Janessa Pagnussat

Doutoranda em Filosofia (UFSM) e professora de Filosofia (UFN)

12/09/2023 • Coluna ANPOF

A fenomenologia configura-se hoje como uma “sinfonia a muitas vozes”, como bem afirmou o Papa João Paulo II, em Roma, no dia 24 de Março de 2003, em um encontro com fenomenólogos do mundo todo, afirmando ainda que, a fenomenologia é sobretudo uma atitude de caridade intelectual para com o homem e o mundo. Considerando as palavras, de ninguém mais ninguém menos que João Paulo II, a fenomenologia pode, com efeito, entender-se como caritas no sentido de desvelo e cuidado por tudo o que aparece e de amor pela verdade de tudo o que se manifesta.

Conforme Jean-François Lyotard (2008), na obra, “A fenomenologia”, a doutrina universal das essências, ou seja, a fenomenologia, mais precisamente a fenomenologia de Husserl, germinou durante a crise do subjectivismo e do irracionalismo (fim do século XIX, início do XX). Este pensamento que se situou na história como próprio, história que é aliás, também é a nossa. Foi contra o psicologismo, contra o pragmatismo, contra uma etapa do pensamento ocidental que a fenomenologia refletiu, buscou apoio e combateu. Começou por ser e continua sendo uma meditação acerca do conhecimento, um conhecimento do conhecimento. “Por isso, a história envolve a fenomenologia, e Edmund Husserl disso teve consciência, da primeira a última linha da sua obra”.

O termo fenomenologia compreende-se a partir dos constituintes gregos: phainomenon e logos, ao pé da letra denomina-se como um saber sobre o fenômeno, o fenômeno qualifica o objeto desta ciência. À luz da definição etimológica da fenomenologia e do percurso brilhante executado por Husserl (fenomenologia clássica/histórica), é que o filósofo francês Michel Henry (1922-2002), que também é umas das vozes mais radicais da fenomenologia contemporânea, vai em uma outra orientação/direção, em busca de compreender o aparecer do fenômeno enquanto tal, isto é, a sua fenomenalidade, o aparecer do aparecer.

O pensamento henryano situa-se, assim, no perfil fenomenológico de “denúncia” das chamadas filosofias da consciência, filosofias “histo?rico-transcendentais” voltadas unicamente ao pendor teorético-abstractivo. Em contraponto com a fenomenologia (husserliana), voltada ao ego transcendental, a fenomenologia henryana buscou seguir em “outra direção” quando se propôs atender não ao “pericarpo da fenomenologia”, aos fenômenos já constituídos no mundo, digamos assim, antes à fenomenalidade dos fenômenos, a isso que ele chama o seu “inverso esquecido”. 

O ser só é enquanto o aparecer aparece. Dentre os quatros princípios da Fenomenologia analisados por Michel Henry, destacamos o “A tanta aparência, tanto ser”, que reformulado sob as análises henryanas, compreende-o como “A tanto aparecer, tanto ser” enaltece o aparecer fenomenológico no ser ontológico. O fenômeno que se elucida ao ser em sua fenomenalidade pura, sendo assim a fenomenalização do próprio fenômeno. Não se trata de uma constituição do ser enquanto tal, mas uma doação pura, o fenômeno que advém a si mesmo, se doa e se experimenta em sua própria doação.

O ser e seu aparecer remetem a uma dupla significação. O ser possui um caráter ontológico, enquanto o aparecer possui um caráter fenomenológico. Assim, o fenômeno que aparece ao ser não pode ser entendido com um significado de aparência. Henry se distancia da formulação husserliana “tanta aparência, tanto ser” que caracteriza o ser que aparece enquanto tal no mundo, ou seja, o aparecer ontológico do ser no mundo, aquele que intenciona e que se constitui pela consciência transcendental. O aparecer do qual fala Henry não é o aparecer do mundo, mas o aparecer dos fenômenos antes mesmo de serem intencionados, pois eles não dependem de uma intencionalidade da consciência. Esse aparecer é um autoaparecer, o aparecer do aparecer, a autodoação imanente, a fenomenalidade pura. Assim, a intencionalidade seria o modo de fenomenonalização dessa fenomenalidade pura.

Michel Henry procura reformular as bases da própria fenomenologia a partir do pressuposto de ir ao autoaparecer do ser, à fenomenalidade pura. Essa busca pela renovação do próprio método fenomenológico é evidenciada pelo filósofo francês na seguinte afirmação: “é o objeto que constitui o método” (2014, p. 49). Portanto, há aqui uma inversão do método para se chegar ao objeto. Questiona-se, então, o que conduz à fenomenalidade pura senão o próprio ser ao qual aparecem esses fenômenos? Ainda, “um objeto e método da fenomenologia não constituem senão algo uno?”. O próprio fenômeno e o método de acesso a ele se dá pelo ser. É pelo próprio autoaparecer do ser que ele se torna evidente. Inverter o método é ir ao objeto, ao seu aparecer fenomenológico. Assim, a doação da fenomenalidade pura precede o aparecer do ser no mundo.

Inverter é percorrer o caminho inverso em direção aos fenômenos que se manifestam, buscar o que é doado fenomenologicamente em cada essência. Esta inversão da fenomenologia é a coluna vertebral de todo o projeto filosófico de Michel Henry e que ele procurou defender rigorosamente ao longo dos anos. Em que, a obra L’essence de la manifestation conduz essa busca à primordialidade da vida como essência da manifestação. A fenomenalidade pura é a essência da vida que se doa e que se revela no ser. Assim, a dupla significação do aparecer adquire seu outro significado: o autoaparecer fenomenológico do ser é o aparecer da vida. Ela se manifesta sem necessidade de um método que o conduza para a sua manifestação, porque ela é não-intencional, é imanente.

A tanta vida, quanto ser! – porque viver significa ser. Não há um distanciamento entre o ser e sua essência. A chamada Fenomenologia da vida ou Fenomenologia material de Michel Henry se apresenta como um novo pressuposto de estudo do ser, considerado o mais profundo do século XX pela originalidade de sua teoria. A Fenomenologia recebe uma nova concepção a partir da investigação dos fenômenos que aparecem ao ser. A vida como manifestação se materializa enquanto faz experimentação de si mesma. Essa vida é fenomenológica e é afetiva. Por isso, ela se sente e se experimenta na pura doação. Os afetos são doados no ser, como sofrimento ou fruição, pois são tonalidades – ora fruem, ora sofrem. É em sua obscuridade que ela se revela à luz do mundo, se fenomenaliza.

Assim, considera-se pertinente pensar sobre a fenomenologia a partir da sua materialidade: a afetividade. Aquilo que é invisível aos olhos do mundo, mas se manifesta fenomenologicamente no Ser. Isso nos faz refletir para não nos distanciarmos de nossa própria essência, aquilo que nos afeta em nossa interioridade, já que o esquecimento da vida pode conduzir à barbárie. A Fenomenologia material também é um chamado importante para o cuidado com nossa própria vida, não nos deixando levar pela superficialidade do mundo. Assim, a reflexão filosófica de Michel Henry ajuda-nos a pensar sobre o nosso tempo e a nossa condição. 

 

Referências bibliográficas:

HENRY, Michel. L’essence de la manifestation. Paris: Épiméthée, PUF, 2003.

HENRY, Michel. Encarnação: uma filosofia da carne. Trad. Carlos Nougué. São Paulo: É Realizações, 2014.