Fertilidade, plausibilidade e Foucault

Gregory Gaboardi

Doutor em Filosofia pela PUCRS

02/08/2024 • Coluna ANPOF

Farei uma versão qualificada da denúncia, comum na história da filosofia, de que o “o rei está nu”. Qualificada pela modéstia: defenderei apenas que, dependendo dos óculos que você colocar, verá que, no mínimo, o rei não está completamente vestido. Talvez esteja nu, talvez esteja só de boné. O rei da vez é Foucault. Ele não parecia ter vergonha da careca, então o boné não deve ser a melhor peça para essa imagem. Deixo a decisão sobre a vestimenta para a imaginação do leitor.

Por que Foucault? Como estão se completando quarenta anos do seu falecimento, pipocam discussões e eventos sobre ele (e o trabalho dele) pelo país. Fica nítido o quanto ainda é influente. Nessas condições, é tentador fazer críticas que pareçam frutos da pobreza de espírito. Do polemismo mesquinho e de outros tipos de baixeza. É exatamente o que farei. Só reforça esse aspecto o fato de que minha crítica incide mais sobre os admiradores do Foucault do que sobre o trabalho dele.

Primeiro, porém, devo esclarecer a metáfora dos óculos. Valorizamos certas características em um trabalho filosófico e os avaliamos positivamente ou negativamente na medida em que exemplificam tais características. Penso que duas delas se destacam nesse papel: fertilidade e plausibilidade. Por “fertilidade” entendo a característica de trazer conceitos e assuntos inéditos ou negligenciados, propor abordagens inovadoras, inspirar mudanças em nossas formas de agir (incluindo pensar). É uma característica que costumamos valorizar na arte. Por “plausibilidade” entendo a característica de ter argumentação cogente, ter razões ou evidências sendo oferecidas e articuladas sob a pretensão de serem boas razões ou evidências para conclusões precisamente formuladas. É uma característica que costumamos valorizar na ciência.

Fertilidade e plausibilidade não são incompatíveis. Mas, em filosofia, dificilmente damos o mesmo peso para as duas características. Não há mal nisso desde que exista discernimento, em uma avaliação, sobre os padrões assumidos. Ao avaliar um trabalho, se você coloca os óculos da fertilidade, o rei pode parecer nu mesmo que esteja com um traje impecável, mas que se torna visível somente com os óculos da plausibilidade. E vice-versa. Sem discernimento sobre os padrões assumidos, um admirador facilmente se convence de que o rei não pode estar nu, não importando os óculos usados, e um crítico facilmente comete o erro inverso.

Quem admira o trabalho de Foucault costuma priorizar, em um trabalho filosófico, que ele seja fértil. Valoriza o modo como Foucault conceitua relações de poder e discursos, valoriza o fato de ele abordar, e o modo como aborda, a loucura, o encarceramento e a sexualidade. Que o trabalho tenha clareza, argumentação cogente, que seja evidencialmente robusto de modo geral, fica em segundo plano.

Penso que o problema, nesses admiradores, é que frequentemente eles não consideram o quanto Foucault vai mal no aspecto da plausibilidade. O quanto ele não argumentava bem. Parecem assumir que Foucault não pode ser ruim ao ponto de ter apenas (ou se tanto) algum mérito de fertilidade. Que não pode ser ruim ao ponto de dever ser tratado como sendo tão informativo sobre a realidade quanto alguns trabalhos de ficção seriam (que, ainda que possam ser realistas, continuam sendo ficção). Alguns talvez até prefiram questionar a diferença entre realidade e ficção do que cogitar que Foucault seja péssimo quando se trata de raciocinar, de dar boas razões para o que se alega. Com isso não estou dizendo que Foucault de fato seja uma calamidade no aspecto da plausibilidade. O problema é a atitude de alguns admiradores que veta, dogmaticamente, a possibilidade de Foucault ser péssimo nesse aspecto, quando é fácil ver que Foucault no mínimo não era bom nele.

Esses admiradores provavelmente concordariam que costumam assumir que Foucault argumentava bem. Podem inclusive estar certos de que sabem disso. Assim, como resposta à minha crítica, resta que neguem minha afirmação de que Foucault não argumentava bem. Aliás, a afirmação de que “Foucault não argumentava bem” é um tanto vaga (sobretudo partindo de alguém que insinua prezar pela plausibilidade): ele nunca argumentava bem? Na maioria das vezes? Algumas vezes? Fora que não ser bom não implica ser ruim, como atesta a mediocridade.

Entretanto, não é irreparavelmente vaga: quando afirmo que Foucault não argumentava bem estou afirmando que, em uma maioria significativa, os argumentos filosóficos de Foucault não apoiam as conclusões que pretendiam apoiar. Não mostram que essas conclusões são verdadeiras ou mais provavelmente verdadeiras.

Fornecer uma amostra representativa de argumentos ruins de Foucault, que tornasse difícil negar a conclusão de que ele não argumentava bem, é inviável pelo espaço que tenho. Porém, é viável fornecer outro tipo de evidência, que considero até mais contundente: a de que argumentar bem não era uma preocupação, ou a principal preocupação, do próprio Foucault ao filosofar. Nestes trechos ele descreve o que esperava de críticas e o que buscava na filosofia:

 “Não posso senão sonhar com um tipo de crítica que tentasse não julgar, mas dar vida a uma obra, a um livro, a uma frase, a uma ideia; acenderia fogueiras, observaria a grama crescer, ouviria o vento, pegaria a espuma do mar na brisa e a espalharia. Multiplicaria não julgamentos, mas sinais de existência; iria convocá-los, arrastá-los de seu sono. Talvez às vezes os inventasse - tanto melhor. Tanto melhor. A crítica que profere sentenças me faz dormir; Gostaria de uma crítica feita de saltos cintilantes da imaginação. Não seria soberana nem vestida de vermelho. Traria consigo os raios de possíveis tempestades.” (Foucault, 1994, p.323, tradução minha)

“Mas, então, o que é a filosofia hoje – quero dizer, a atividade filosófica – se não é o trabalho crítico que o pensamento exerce sobre si? Em que consiste, senão na tentativa de saber como e em que medida seria possível pensar de maneira diferente, em vez de legitimar o que já se sabe? (Foucault, 1990, pp.8-9, tradução minha)

Foucault estava preocupado antes de tudo com fertilidade, não com plausibilidade. É compreensível que, segundo o padrão da fertilidade, Foucault tenha seus admiradores. Ele buscou ser fértil, avaliar e ser avaliado sob esse padrão. O próprio Foucault fala bastante no “jogo da verdade”, e poderíamos dizer que esse jogo é um que ele jogava contrariado. Não é um que ele estava preocupado em jogar bem. Ocasionalmente Foucault era explícito sobre isso:

“Não sou meramente um historiador. Não sou um romancista. O que faço é uma espécie de ficção histórica. Em certo sentido, sei muito bem que o que digo não é verdade. Um historiador poderia dizer do que eu disse: ‘Isso não é verdade’. Devo colocar desta forma: escrevi muito sobre a loucura no início dos anos 1960 – uma história do nascimento da psiquiatria. Sei muito bem que o que fiz, do ponto de vista histórico, é estrito, exagerado. Talvez eu tenha descartado alguns fatores contraditórios. Mas o livro teve um efeito na percepção da loucura. Portanto, o livro e a minha tese têm uma verdade na realidade atual. O que estou tentando fazer é provocar uma interferência entre a nossa realidade e o conhecimento da nossa história passada. Se eu conseguir, isso terá efeitos reais em nossa história presente. Minha esperança é que meus livros se tornem realidade depois de terem sido escritos – não antes.” (Foucault, 1996, p.301, tradução minha)

Voltando ao meu argumento: é mais provável que uma pessoa não argumente bem se não está preocupada em argumentar bem. Argumentar bem é trabalhoso. Pode ser que, milagrosamente, uma pessoa argumente bem apesar de não se importar com isso. Logo, essa evidência sobre como Foucault encarava sua prática não é decisiva. Mas, é forte evidência de que ele não argumentava bem. Levar a sério o modo como ele encarava a reflexão filosófica justifica certa cautela sobre o quanto se pode confiar que as alegações dele sejam apoiadas por bons raciocínios ou evidências. Ele priorizava que suas alegações fossem como os raios de possíveis tempestades, não que fossem rigorosamente precisas e bem embasadas.

Vale enfatizar que não estou defendendo que Foucault quase nunca argumentava e que, quando argumentava, os argumentos eram sempre ruins. Até porque, para Foucault, não se tratava de ignorar completamente o jogo da verdade:

“Há toda uma ética insone da evidência que não exclui, longe disso, uma economia rigorosa do Verdadeiro e do Falso; mas que não se limita a isso.” (Foucault, 1979, p.83, tradução minha)

O trabalho de Foucault seria bem diferente se ele de fato não tivesse nenhuma preocupação com plausibilidade. Essa preocupação existia em alguma medida. Só não era suficiente para fazer com que ele se preocupasse em argumentar bem, e ele não via problema nisso. Seja como for, a visão dele sobre o próprio trabalho é evidência de que o rei não está bem vestido se usarmos os óculos da plausibilidade. A negação dogmática disso é parte do que faz haver trabalhos sobre Foucault que, quando são críticos em alguma medida, no máximo pretendem mostrar “limites” do pensamento dele, ficando longe de pretender mostrar qualquer erro substancial.


Referências

Foucault, M. Pour une morale de l'inconfort. In: Le Nouvel Observateur, n. 754, pp. 82-83. 1979.

____. The History of Sexuality, Volume 2: The Use of Pleasure. New York: Vintage Books. 1990.

____. Ethics: Subjectivity and Truth. Vol. 1. Rabinow, P. (ed.). New York: The New Press. 1994.

____. Foucault Live. Lotringer, S. (ed.). New York: Semiotext(e). 1996.


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