Filosofia Brasileira: tensões e perspectivas
Halwaro Carvalho Freire
Doutor em Filosofia pela UFC. Estágio de pós-doutorado em Filosofia Brasileira na Universidade do Porto
19/02/2025 • Coluna ANPOF
A reflexão filosófica no Brasil tem se situado, ao longo do tempo, em uma posição ambígua, oscilando entre a acolhida cega de paradigmas europeus e o anseio por uma concepção de pensamento que, de fato, brote das profundezas da realidade cultural, histórica e social que fundamenta o ser brasileiro. Entre essas duas forças, a filosofia brasileira se vê constantemente em um dilema: ao mesmo tempo em que busca absorver as heranças do velho continente, sente o imperativo de afirmar sua própria identidade, com uma reflexão que se fundamente nas questões que definem sua singularidade. Conforme Cruz Costa (1960), em Panorama da História da Filosofia no Brasil, a filosofia brasileira sempre atravessou um percurso de transição, da mera reprodução de modelos europeus para a busca de uma reflexão enraizada nas condições culturais, históricas e sociais do Brasil. Ivan Domingues (2017), em Filosofia no Brasil. Legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos, constrói, de maneira refinada, uma identidade que transcende a mera historiografia. Tal obra não se limita a um relato sequencial de fatos, mas se propõe a iluminar as questões e heranças filosóficas que permeiam a trajetória intelectual do Brasil. Nesse processo, ao refletir sobre as perspectivas filosóficas que moldaram o pensamento brasileiro, Domingues (2017) não só rememora o passado, mas também provoca uma reinterpretação crítica das influências que constituem o saber filosófico no contexto nacional, revelando os legados que, ao longo do tempo, continuam a ressoar nas correntes contemporâneas. Assim, a obra não se restringe a um inventário acadêmico, mas se inscreve como um convite a uma compreensão mais profunda das interações entre filosofia e cultura, passado e presente, local e universal. Leonel Franca (1962), por sua vez, em Noções de História da Filosofia, sublinha o papel fundamental da tradição europeia no Brasil, mas destaca a necessidade de adaptá-la às condições históricas e culturais locais.
José Crisóstomo (2008), converge com Margutti (2013) ao destacar a importância de compreender a formação do pensamento filosófico nacional como uma prática enraizada na realidade cultural e histórica do Brasil. Crisóstomo (2008) enfatiza que a filosofia brasileira precisa ser lida em sua relação com os desafios específicos do país, particularmente no que diz respeito à mestiçagem cultural, às desigualdades sociais e à construção de uma identidade nacional. Marques (2023) em, Formas da filosofia brasileira: 12 aportes metodológicos à historiografia, metalinguagem e autocrítica da filosofia brasileira propõe tais aportes que visam reavaliar a forma como a filosofia brasileira se posiciona tanto em relação aos paradigmas europeus quanto à sua realidade interna. Além de discutir a metalinguagem filosófica, a obra explora como a autocrítica é essencial para o desenvolvimento de uma filosofia genuinamente brasileira, capaz de dialogar com suas tradições culturais e sociais, sem se submeter passivamente a modelos externos.
Nesse contexto, compreendemos que a filosofia brasileira não deve ser vista como uma mera extensão das tradições europeias, mas como uma criação própria, que articula de forma crítica e criativa os saberes locais às questões de cunho universal. Essa perspectiva é particularmente relevante quando analisamos a filosofia brasileira sob duas perpsepcitvas: a dos povos originários e a da relação entre Filosofia e Literatura. Essas duas perspectivas, aparentemente distintas, não apenas se relacionam, mas se complementam, oferecendo possibilidades singulares para compreender e ajudar a reconfigurar o lugar da filosofia no e do Brasil.
As filosofias dos povos originários, tal como articulada por Ailton Krenak (2019) e Daniel Munduruku (2009), por exemplo, oferecem contribuições indispensáveis para a consolidação de uma Filosofia Brasileira que aspire à autenticidade e à pluralidade. Essas perspectivas possibilitam um deslocamento epistemológico, ético, social e político, reposicionando o pensamento filosófico em relação às realidades culturais e históricas do país.
Ao problematizarem as bases do antropocentrismo ocidental e a supremacia da razão instrumental, Krenak (2019) e Munduruku (2009) apontam para caminhos alternativos que ressignificam o humano, o saber e a convivência com o mundo. Krenak (2019), em sua obra Ideias para Adiar o Fim do Mundo, questiona profundamente o paradigma moderno que separa o humano da natureza, propondo uma ética da interdependência. Essa visão, fundamentada na cosmologia indígena, desafia a hegemonia da racionalidade ocidental e apresenta uma concepção de existência que integra o humano à teia da vida.
Kopenawa (2015), em sua obra A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, traz à luz uma ontologia relacional, que contrasta com o dualismo cartesiano predominante no pensamento ocidental. Para Kopenawa (2015), não há uma separação rígida entre o humano e o não-humano, o material e o espiritual. Em vez disso, ele descreve uma realidade interconectada, na qual seres humanos, animais, plantas e espíritos coexistem em uma rede dinâmica de relações. Essa perspectiva ontológica questiona as premissas antropocêntricas e instrumentalistas, propondo uma visão integrada e holística do cosmos.
O antropólogo indígena Luciano (2006), em textos como O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil hoje, argumenta pela necessidade de superar a dicotomia entre saber tradicional e filosofia. Ele destaca que os povos indígenas possuem sistemas filosóficos próprios, baseados na oralidade, na ancestralidade e na conexão com o território. Munduruku (2018), por sua vez, ao enfatizar a importância da narrativa, da oralidade e da ancestralidade em obras como A literatura indígena não é subalterna, amplia os horizontes epistemológicos da filosofia. Sua defesa da memória coletiva e das práticas comunitárias como formas de produção de saber propõe uma filosofia que transcende o logocentrismo acadêmico, incorporando modos de reflexão baseados no diálogo intergeracional e na conexão com o território.
Outro conceito fundamental, baseado em filosofias dos povos originários e que pode contribuir para consolidação de uma filosofia brasileira é o de cosmopolítica filosófica. Bruno Latour (2020) em, Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno, argumenta que a política contemporânea precisa incluir não apenas os seres humanos, mas também os não-humanos e os ecossistemas, considerando a interdependência de todos os componentes da Terra. Latour sugere uma política de convivência planetária que transcende a lógica do Estado-nação e incorpora as dimensões ambientais, culturais e sociais globais.
A cosmopolítica filosófica também dialoga com as epistemologias do Sul Global, como exemplificado pelas ideias de Eduardo Viveiros de Castro (2002) em A inconstância da alma selvagem: ensaios sobre a psicologia ameríndia. Viveiros de Castro (2002) propõe uma visão cosmopolítica indígena, na qual os povos originários possuem uma visão de mundo que não separa o humano do não-humano, e onde as relações entre os seres vivos são vistas como uma rede de interdependência e reciprocidade. Esse pensamento descoloniza a cosmopolítica ao incluir os saberes indígenas e suas formas de organização social e política.
Compreendemos que essas perspectivas sugerem que a filosofia brasileira, para consolidar-se como autônoma, deve assumir o desafio de pensar com e a partir da pluralidade de experiências e epistemologias presentes no Brasil. Dessa maneira, investigar a filosofia dos povos originários é não apenas resgatar uma tradição marginalizada pela história colonial, mas também permitir que a filosofia brasileira encontre novas bases para dialogar com questões contemporâneas, como a crise ambiental e os desafios da convivência intercultural, por exemplo.
Não menos importante, como argumenta Margutti (2013), a relação entre filosofia e literatura no Brasil aponta para uma dimensão simbólica e imaginativa que expande os horizontes tradicionais do discurso filosófico e que também se mostra fundamental para consolidação da Filosofia Brasileira. Autores como Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Gonçalves de Magalhães, entre outros, incorporam em suas obras elementos filosóficos que questionam os limites entre o literário e o conceitual.
Essa perspectiva amplia as possibilidades interpretativas, permitindo à filosofia brasileira articular respostas originais aos desafios históricos, culturais e sociais do país. Além disso, a literatura brasileira também pode ser compreendida como uma crítica social e cultural. Autores como Aluísio Azevedo (2011), José de Alencar (2007) e Euclides da Cunha (2012), por exemplo, não apenas narram histórias, mas questionam e problematizam a realidade social brasileira, abordando temas como a desigualdade, o colonialismo, a escravidão e as tensões raciais e culturais. Esses elementos são fundamentais para a construção de uma filosofia que se preocupa com as especificidades do Brasil e que busca um pensamento genuinamente nacional. Essa relação entre filosofia e literatura permite que a Filosofia Brasileira se configure como um campo de múltiplas vozes, onde a tradição filosófica ocidental não é rejeitada, mas questionada e reinterpretada à luz das experiências culturais, sociais e históricas do Brasil.
Compreendemos que a filosofia brasileira, em vez de buscar uma essência fixa, precisa abraçar sua pluralidade como característica principal. Desta maneira, torna-se fundamental não apenas investigar as influências externas que moldaram o pensamento no Brasil, mas também compreender os autores, os conceitos e as problemáticas nacionais que emergem dessa complexa interação cultural. O diálogo entre filósofos amplamente estudados – como Kant, Hegel, Sartre, Marx, Nietzsche ou Platão – e os pensadores brasileiros permite não apenas a valorização do pensamento nacional, mas também uma abordagem crítica e interdisciplinar, abrindo novas possibilidades interpretativas. Pensamos que o potencial inovador da filosofia brasileira reside justamente na sua capacidade de dialogar com a diversidade e transformar essa pluralidade em uma força criativa.
Referências
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