Filosofia DEF
Fábio Abreu dos Passos
Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPI, artista visual e uma pessoa com deficiência.
21/09/2023 • Coluna ANPOF
Estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgadas em 2023, tendo como base os dados da Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2022, apontam que existem no Brasil mais de 18,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, o que equivale a 8,9% da população brasileira, considerando-a com idade igual ou superior a dois anos. Já em termos mundiais, calcula-se que existe mais de 1 bilhão de pessoas com deficiência (DEFs), o que equivale a 15% da população do mundo.
Cerca de 54,4% da população jovem brasileira com algum tipo de deficiência (na faixa etária de 15 a 17 anos) frequenta o Ensino Médio. Dos jovens da mesma faixa etária que não são pessoas com deficiência, 70,3% frequentam o Ensino Médio. No grupo de DEFs entre 18 a 24 anos, 14,3% cursavam o Ensino Superior, contra 25,5% das pessoas sem deficiência. De acordo com levantamentos estatísticos realizados pelo professor Fernando de Sá Moreira (UFF), tendo como base os dados divulgados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) da “Coleta CAPES” de 2020, estima-se que no Brasil há aproximadamente 395.769 estudantes cursando alguma pós-graduação. Destes, apenas 0,64% são pessoas com deficiência, ou seja, 2.525 estudantes.
Sabemos que, quando nos referimos aos números relativos às pessoas que estão cursando os diferentes níveis de ensino no Brasil, esses são diminutos quando nos referimos a alguns marcadores sociais. Contudo, quando esses números se referem às pessoas com deficiência, seja em relação à educação ou a outro tema, como mercado de trabalho, transporte público, segurança, saúde e as formas de violência que esse grupo social sofre cotidianamente, quase não são divulgados e, quando o são, a sociedade não dá a devida importância. Para corroborar essa assertiva, mencionamos a divulgação da edição do Atlas da Violência 2021, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que pela primeira vez, desde sua criação no ano de 2016, expôs as taxas de notificação de violências cometidas contra pessoas com deficiência.
Qual a raiz da invisibilidade dos temas relacionados às pessoas com deficiência? Por que esses temas são tratados com descaso ou com falta de compreensão mais apurada? Por décadas, o discurso dominante acerca da pessoa com deficiência era “inclusão/acessibilidade”. Este par conceitual é insuficiente para compreender o existir de uma pessoa com deficiência. Faz-se necessário pensar as questões relacionadas às pessoas com deficiência para além do trivial discurso de “inclusão/acessibilidade”, que pretende “incluir” a pessoa com deficiência no interior de estruturas capacitistas, sem que se tenha uma discussão aprofundada sobre a urgência de se colocar em prática ações que contribuam para que haja uma desconstrução das visões de mundo que se voltam para os corpos DEFs, com o intuito de marcá-los com o selo da abjeção. Portanto, é preciso extirpar do seio de nossas sociedades o capacitismo: preconceito contra a pessoa com deficiência.
O termo capacitismo vem do inglês ableism e indica uma ação de discriminação contra uma pessoa que possui uma deficiência. Os discursos capacitistas engendram ideias de que DEFs são inferiores àquelas sem deficiência e que são incapazes de exercer determinadas tarefas e atividades. O capacitismo é um conceito que se propagou nos anos de 1980, nos Estados Unidos da América, por ocasião dos movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência, e vem se tornando cada vez mais conhecido em razão da publicização dos inúmeros casos de desrespeitos, de invisibilidade e de exclusão das pessoas com deficiência.
Quando analisamos discursos filosóficos de hoje, bem como de outrora, podemos, sem anacronismo, aplicar a eles o selo do capacitismo, ou seja, discursos que balizam a qualidade do humano pela métrica da normalidade ou da anormalidade. Por exemplo, na obra A República, no Livro V, 460c, Platão assevera que se deve pegar os filhos dos homens superiores e levá-los para o aprisco, para junto das amas que moram à parte num bairro da cidade. Ao contrário, os filhos dos homens inferiores e qualquer dos outros que sejam disformes devem ser escondidos em um lugar oculto, para que seus corpos sejam mantidos na invisibilidade, longe do olhar público. Discurso semelhante encontramos na obra A Política, especificamente no Livro VII, Capítulo XIV, 1335b. Nesta, Aristóteles assevera que “[...] deve haver uma lei que proíba alimentar toda criança disforme”. Ainda, na Antiguidade, Lucrécio nos adverte que “[…] a Terra tentou criar numerosos monstros de estranho aspecto e membros [...], seres que não tinham pés ou que não tinham mãos, e também os que não tinham boca e eram mudos e os que se encontravam cegos e sem face [...]” (Lucrécio, Da Natureza dos Coisas, Livro IV, vers. 824). Na contemporaneidade, a obra de Charles Taylor, intitulada Argumentos filosóficos, elabora a compreensão da “política da igual dignidade”, que tenciona as pessoas com deficiência de forma capacitista. Para Taylor, a “política da igual dignidade” aponta para o fato de que todos os seres humanos são igualmente dignos de respeito. A partir dessa premissa, Taylor elaborará sua compreensão do potencial humano universal, ou seja, “[…] uma capacidade que partilha todos os seres humanos”. Ele conclui afirmando que “De fato, nosso sentido de importância da potencialidade vai tão longe que estendemos essa proteção mesmo a pessoas que, devido a alguma circunstância que as atingiu, são incapazes de realizar seu potencial da maneira normal – por exemplo, deficientes ou pessoas em coma” (Taylor, Argumentos filosóficos, p. 253).
Os discursos capacitistas propagados pelos padrões normalizadores direcionam a percepção de boa parte da sociedade acerca da pessoa com deficiência. Esses padrões normalizadores “determinam” que as pessoas com deficiência necessitam de cuidados médicos e de acompanhamento constante, e que, por esses motivos, não são capazes de exercer com “eficácia produtiva” e com “normalidade” um grande número de atividades, a exemplo da pesquisa e da docência filosóficas. Sem dúvida, há uma grande parcela de DEFs que necessita de cuidadores, devido ao seu grau de lesão. Contudo, essa parte do todo não pode ser a métrica que avalia que as pessoas com deficiência são inaptas para várias atividades e absolutamente dependentes de outras pessoas.
Os Programas de Pós-graduação em Filosofia estão imersos nesses padrões normalizadores que determinam o estereótipo de uma pessoa com deficiência. Diante disso, faz-se imperioso discussões e implementações de ações por parte de nossos PPG-Fs para que haja a eliminação das barreiras arquitetônicas, atidudinais, comunicacionais entre outras, para que a “inclusão” fria, normativa e pouco producente dê lugar às reflexões e às práticas anticapacitistas, capazes de possibilitar o ingresso e a permanência, até a conclusão de sua pós-graduação, de pessoas com deficiência. Estas ações, a médio e a longo prazo, também elevarão o número, que hoje é extremamente diminuto, de pessoas com deficiência em nossos PPG-Fs. Os dados fornecidos pela “Coleta CAPES” e analisados pelo professor Fernando de Sá Moreira (UFF) no âmbito do projeto “Dataphilo” apontam que nos anos de 2018 e 2019 havia 16 pessoas com deficiência entre todos os 4.359 estudantes nos PPG-Fs. Os dados mais recentes, de 2020, apontam que do total de 4.381 pós-graduandos em filosofia somente 21 são DEFs, ou seja, cerca de 0,48%. Quando nos voltamos para o número de docentes DEFs nos Programas de Pós-graduação em Filosofia, percebemos que esses praticamente inexistem.
O dia 21 de setembro é a data escolhida para lembrar o “Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência”. Nesta data, procura-se promover ações que tenham como objetivo principal realizar um movimento de conscientização em relação à luta contra o capacitismo e em favor dos direitos das pessoas com deficiência. Através de ações políticas e de modos de compreensão abrangentes de mundo, é possível fazer com que as pessoas com deficiência sejam vistas como sujeitos de direitos e não como meros o(a)bjetos de experimentos biológicos e de intervenções médicas. Para tanto, é valioso fazer uso de ferramentas conceituais legadas por filósofos e filósofas para pensar o locus das pessoas com deficiências em nossa sociedade como um todo, e em nossos PPG-Fs em específico.
Quando utilizamos conceitos e categorias filosóficas – como as legadas por Merleau-Ponty, Michel Foucault, Judith Butler, Jacques Rancière dentre outros – para pensar a existencialidade DEF, implementamos um movimento capaz de desestabilizar as estruturas que sustentam os padrões normalizadores estabelecidos. Uma “Filosofia DEF” será capaz de suspender a crença de que há um juízo que subjuga particulares a partir de métricas universais, métricas estas que não são capazes de “contabilizar” os corpos torcidos, retorcidos, amputados e atrofiados, enfim, a potência de um corpo de uma pessoa com deficiência.
As reflexões que procurei desenvolver nesse texto são fruto de luta e afetos, pois sinto cotidianamente o que é não possuir uma materialidade, um corpo que seja percebido e tencionado enquanto tal, pois, sendo uma pessoa com deficiência (paraplégico/cadeirante), sou sabedor do que é ser visto como monstro, anormal, defeituoso, doente, incapaz e invisibilizado enquanto ser humano. Por intermédio das minhas pesquisas filosóficas e do meu fazer artístico, tenho procurado explicitar o que vejo, o que experiencio no dia a dia, ou seja, a invisibilidade, a não materialidade dos corpos das pessoas com deficiência.