Filosofia e Ciência: um antídoto contra o negacionismo e suas variantes

Paulo Tadeu

Professor de Filosofia (UFABC)

02/03/2021 • Coluna ANPOF

Texto publicado no dia 22 de fevereiro no Le Monde Diplomatique Brasil em parceria com a Coluna Anpof. Paulo Tadeu é professor de Filosofia da UFABC.

Ao longo dos últimos doze meses nossa atenção tem se voltado, quase que exclusivamente, para a pandemia de Covid-19 que ainda atravessamos. Com reflexos talvez impensáveis em nossas vidas, seus efeitos escancaram nossas fragilidades, as desigualdades sociais e estruturais, além dos evidentes efeitos da apropriação e transformação que impomos ao meio ambiente. Em tempos de bravatas negacionistas – nos quais o terraplanismo e a disseminação de falsos e absurdos efeitos colaterais das vacinas são dois exemplos bem conhecidos – a ciência tomou o centro da cena nos mais diversos meios de comunicação e informação: jornais, revistas, telejornais e redes sociais. A solicitação da avaliação científica tornou-se uma tônica, conferindo à ciência e aos cientistas destaque incomum. É a partir do parecer científico que se tem engrossado o movimento contra a propagação de fake news, particularmente aquelas que, sem qualquer aparato crítico relevante e confiável, disseminam aqueles efeitos absurdos e fantasiosos das vacinas.

O lugar ocupado pela ciência nesse contexto é, sem dúvida, uma boa notícia. Contudo, pode ensejar uma compreensão pouco fundamentada sobre a ciência, dando margem, inclusive, a alguma espécie de dogmatismo. Decorre daí a importância da Filosofia e História da Ciência. Componentes de longa data de nossos currículos universitários, sua função não se esgota na exegese de autores, mas insere-se no contexto dos problemas epistemológicos e éticos suscitados pelo conhecimento científico – entendido no seu arco mais amplo possível. Para além desses currículos, é preciso que esses problemas se façam presentes na formação de estudantes da Educação Básica, o que exige um trabalho interdisciplinar acompanhado de estratégias e materiais didáticos adequados. A razão me parece dupla: de um lado, a imunização contra todas as variantes de negacionismo, de outro, promover um entendimento mais bem fundamentado sobre a boa ciência.

Via de regra, os noticiários sobre as vacinas contra Covid-19 estão repletos de termos que se referem a conceitos centrais quando tratamos de conhecimento científico. Dentre eles, os conceitos de teste e base empírica são, muito provavelmente, os mais utilizados para que se justifique não somente a confiança, mas também a crença nos resultados científicos. Não é incomum, nesses mesmos noticiários, depararmos com a manifestação de cientistas sobre algumas incertezas. Por exemplo, a incerteza de se saber se as vacinas atualmente disponíveis serão ou não eficazes contra futuras variantes do novo coronavírus. Tomadas conjuntamente, confiança e incerteza, propiciam um terreno fértil para promoção daquele entendimento mais fundamentado da ciência e, com ele, a defesa da eficiência do conhecimento científico envolvido com a produção de vacinas. E isto justamente porque a confiança está relacionada com “uma crença pragmática nos resultados da ciência”, tal como afirma Popper no primeiro capítulo do livro Conhecimento objetivo. Dedicado à sua solução do problema da indução, o autor nos lembra que nosso conhecimento do mundo é conjectural, caracteriza-se como um conjunto de hipóteses que, submetidas à crítica, devem ser capazes de obter resultados satisfatórios ao serem contrastadas com a evidência empírica a fim de serem admitidas. Nesse momento, suas palavras soam como uma boa dose de bom senso: “De um ponto de vista racional, não podemos ‘confiar’ em teoria alguma, pois nunca se mostrou nem se pode mostrar, que qualquer teoria é verdadeira”, afirma a certa altura daquele livro. Contudo, diz ainda, “podemos preferir, entretanto, como base de ação, a teoria mais bem testada” – o que significa que a escolha da teoria mais bem testada envolve, em certo sentido, a confiança que nela depositamos. Confiança pragmática, mas nem por isso irracional. Com base nesse critério podemos equacionar incerteza e confiança, quando tratamos das soluções propostas no campo científico.

É certo que as incertezas e controvérsias científicas são parte integrante do processo científico, mas como salienta Luciana Zaterka, em recente entrevista para a Anpof , “a saída para as incertezas e controvérsias da ciência se encontra na própria ciência.”. É a partir da “preferência pela teoria mais bem testada como base de ação” que chegamos a um tipo de confiança menos dogmática e, por isso mesmo mais esclarecida. Confiança diretamente envolvida com a solução enfatizada por Zaterka e, em certa medida, assentada no preceito cartesiano de evitar a precipitação e a presunção. Preceito que, como sabemos, articula-se com um dos objetivos centrais do Discurso do método & Ensaios, a saber, elaborar um método “para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências”.

A ação que ora se coloca tem impactos fundamentais para a contenção da pandemia. De fato, além dos cuidados com a higiene, o uso de máscaras e o distanciamento físico, a vacinação em massa apresenta-se como a alternativa mais consistente e eficaz para combater não só a propagação do novo coronavírus, mas também de evitar seus efeitos mais drásticos em termos de saúde pública. Alternativa devidamente amparada nas evidências empíricas, obtidas por testes conduzidos segundo o devido rigor científico. A crença em sua eficácia está, portanto, racionalmente fundamentada. Novamente, como nos lembra Popper: “uma crença pragmática nos resultados da ciência não é irracional, porque nada é mais ‘racional’ do que o método de discussão crítica, que é o método da ciência.”. Essa mesma racionalidade reforça o compromisso ético com a vacinação, pois nos permite defendê-la em virtude da segurança decorrente dos protocolos de teste científico, tendo em vista a previsão de seus efeitos colaterais.

O bom entendimento do que a ciência pode realizar nos conduz a um duplo efeito. De um lado, a firme rejeição de afirmações lunáticas, desprovidas de qualquer evidência consistente ou rigor metodológico. De outro, a compreensão lúcida daquilo que, por intermédio da discussão crítica, pode ser tomado como algo digno de confiança para nossas ações. É nesse sentido que o combate ao negacionismo ganha contornos muito próprios quando consideramos a tarefa que sempre nos coube, não só como filósofos e filósofas, mas também e principalmente como professoras e professores de Filosofia: formar nossos alunos e alunas por meio do rigor argumentativo e conceitual, tendo em vista a autonomia de pensamento e o compromisso ético e social. Desse modo, ao lado de estudos filosóficos sobre gênero, racismo e pensamento descolonial, emerge do atual contexto social em que vivemos a relevância de estudos voltados para a Filosofia, a História e a Sociologia da Ciência e da Tecnologia, os quais devem nutrir e fomentar nossa prática docente. Relevância que solicita um trabalho interdisciplinar, por meio das interfaces entre ensino de ciências e ensino de Filosofia. Se não nos cabe como filósofos e filósofas a árdua tarefa de desenvolver vacinas eficazes contra a Covid-19 e outras doenças, certamente nos cabe o papel de democratizar a compreensão mais ampla possível daquilo que nosso conhecimento é capaz de construir. Nossas aulas podem ser um poderoso antídoto contra o negacionismo e suas variantes mais perversas.

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Filosofia e Ciência: um antídoto contra o negacionismo e suas variantes

Paulo Tadeu

Professor de Filosofia (UFABC)

22/02/2021 • Clipping