Filosofia e Gênero

Halina Leal

Professora de Filosofia da Universidade Regional de Blumenau

21/06/2021 • Coluna ANPOF

O conceito de gênero foi criado para distinguir a dimensão biológica da dimensão social, considerando as condições sócio-históricas de identificação do ser homem e do ser mulher na sociedade. Nas reflexões a respeito das questões de gênero, um dos pontos cruciais de análise diz respeito à ideia de natureza como definidora de categorias distintivas do masculino e do feminino. O sociólogo Pierre Bourdieu, no seu texto A Dominação Masculina, aponta que a “a divisão entre os sexos parece estar "na ordem das coisas" (...) para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas, em todo o mundo social e, em estado incorporado nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (...)” (BOURDIEU, 2012, P.17)[1] Segundo ele, esta naturalização dos corpos (em masculino e feminino) estabelece a divisão de atividades e funções que resultam em relações assimétricas entre os gêneros. Nesta não simetria, o patriarcado se impõe por meio de modos de pensamento e de linguagem que se constituem como legítimos, objetivos e universais, a partir dos quais situações de opressão sobre o denominado “gênero feminino” se manifestam de diferentes formas.

A filosofia sempre se apresentou e, em geral, ainda se apresenta como um conjunto supostamente universal, imparcial e neutro de pensamentos. Em outras palavras, identifica-se a filosofia com um conjunto de pensamentos sem gênero. Mas, a filosofia e suas narrativas realmente não têm gênero? Para discorrer sobre o assunto, talvez tenhamos que considerar pelo menos duas perspectivas. Uma delas diz respeito ao que efetivamente ocorre na história da filosofia e o que ocorre é o protagonismo masculino. Não que nós mulheres não estivéssemos desde sempre presentes com análises e ponderações sobre os mais distintos tópicos filosóficos. A questão é que fomos e somos recorrentemente silenciadas e apagadas da história contada por filósofos homens, numa reprodução do sexismo e do machismo presentes na sociedade patriarcal. Neste sentido, a filosofia tem servido para reforçar e legitimar as desigualdades entre os gêneros e, sim, ela tem gênero, na medida em que ainda é expressa fortemente por vozes masculinas.

Uma outra perspectiva de reflexão sobre filosofia e gênero, a partir do gênero na filosofia, diz respeito à natureza da própria filosofia. A filosofia é crítica, formulação de questionamentos e desestabilização de posturas enraizadas. O fazer filosófico nos exige reflexões e revisões constantes a respeito da filosofia, de suas narrativas e de seus protagonismos. Isto pode se dar por distintos caminhos, um deles é o reconhecimento do trabalho de filósofas na história do pensamento filosófico, o qual pode proporcionar um novo olhar sobre o cânone filosófico.

A atuação de ativistas e teóricas feministas tem apontado para o fato de textos, livros, obras do cânone filosófico nos conduzirem a acreditar que não existiram filósofas. O cânone é, na sua grande maioria, masculino. Ao identificarmos essa “falta”, começamos a nos dar conta de que obras de grandes filósofas foram desprezadas pelo simples fato destas serem mulheres. Reconhecer tais filósofas é não somente o caminho de resistência à invisibilidade, mas a abertura para acabar com o silenciamento das mulheres na filosofia. Pouco a pouco, filósofas estão sendo “recuperadas” na historiografia filosófica. Esta recuperação não somente ressalta as opressões sofridas por tais mulheres, mas suas capacidades criativas que as conduzem, muitas vezes, a uma antecipação de argumentos de filósofos, além de mostrarem a criação de conceitos e teorias que, por vezes, não são encontrados nas obras de autoria masculina.

A filosofia, a partir desse resgate e reconhecimento das vozes femininas, possui a capacidade de transcender a “história canônica masculina”, gerando textos críticos e emancipatórios que contemplem a realidade em suas múltiplas dimensões. A filosofia, fazendo jus à sua essência crítica, nos permite, assim, operar numa tentativa de resistência não somente ao gênero imposto ao fazer filosófico, mas à cor aí predominante. Sim, a história da filosofia protagonizada por homens, além de gênero, expressa cor. Ela nos revela sua face androcêntrica, branca e racista.  

Nesse sentido, se já há a ausência (ou melhor, o não reconhecimento) de mulheres brancas como agentes de produção de conhecimento filosófico, no que se refere a nós, mulheres negras, essa ausência se aprofunda e intensifica, pois nossas experiências filosóficas são atravessadas pela cor e, consequentemente, pelo racismo. O lugar das mulheres negras não está dado, nem epistemicamente nem enquanto território a ser ocupado em ambientes de produção de conhecimento filosófico. Em geral, nossos pensamentos não são reconhecidos, seja na assimilação e reprodução do cânone, seja na ampliação do que pode ser considerado filosófico.

Em última análise, embora tenhamos percorrido um caminho em que a filosofia se mostrou situada em gênero, cor e narrativa hegemônica, a própria filosofia nos fornece ferramentas para que alcancemos não necessariamente uma neutralidade filosófica, mas a capacidade de filosofar na diversidade. 

Nos reconhecermos como produtoras de conhecimento filosófico se constitui na recusa de apagamento e silenciamento de nós mulheres negras e não negras. Dessa forma, demonstramos nossas potências reflexivas e autônomas, num movimento de resistência à hegemonia imposta pelo imaginário machista, sexista e racista constituinte da sociedade e que, infelizmente, ainda é reproduzido fortemente no ambiente filosófico.

 


[1] BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

 

DO MESMO AUTOR

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Halina Leal

Professora de Filosofia da Universidade Regional de Blumenau

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